Não era um segredo para ninguém que o sr. Oliveira tinha uma quedinha especial por Maria Bethânia. Carismático, bonachão e bom anfitrião, o português Francisco Oliveira fez do seu restaurante, o Farta Brutos, um ponto de encontro de jornalistas, músicos e escritores no Bairro Alto, zona antiga e boêmia de Lisboa. Além da boa comida, a maneira calorosa e familiar que destina aos comensais rendeu fama ao lugar. Nas paredes do estabelecimento há fotografias de muitas caras conhecidas: Michelle Bachelet, Salman Rushdie, José Saramago – que merece prato em sua homenagem, a Patanisca de bacalhau à Saramago, além de uma placa na mesa em que costumava se sentar – ou a fadista Mariza são alguns dos que se deixaram retratar no Farta Brutos.

Entre os clientes célebres também estão vários brasileiros (Gilberto Gil, Jorge Amado, Fernando Meirelles, Nélida Piñon, entre outros), mas nenhum deles é  tão mimado pelo Oliveira como Maria Bethânia, a “Dona Maria”. Só ela tem direito a um pequeno santuário no restaurante. Trata-se de um copo cheio de papéis guardado num armário, protegido por vidro, e que num primeiro olhar não parece conter grande mistério. Mas quando Rogério Oliveira, que após a morte do pai, em 2018, assumiu o comando do negócio, traz o objeto, coloca-o sobre a mesa e me explica o conteúdo, tudo ganha um encanto.

“A Maria Bethânia terminava de jantar e eles ficavam à conversa. Quando ela ia embora, ainda havia sempre um pouco de uísque no copo e então meu pai dizia: leva para o hotel, Dona Maria. No dia seguinte ela mandava o motorista trazer o copo de volta, lavadinho”. O gesto repetiu-se algumas vezes e o sr. Oliveira achava tanta graça naquilo que começou a deixar “o copo da Bethânia” exposto. E quem por lá passava ficava sabendo da história. Daí para que alguém inaugurasse a tradição de deixar uma mensagem à cantora foi quase natural.

Hoje passam de uma centena os recados para Bethânia. Papéis de vários tamanhos, dobrados cuidadosamente ou amassados pelo tempo e o manuseio, alguns assinados e datados, outros sem rastro de remetente. São mensagens que demonstram, sobretudo, admiração, carinho e gratidão para com a “deusa brasileira”, como anotou um fã. “Maria, mulher cheia de luz, sua música e sua arte tornam a vida mais bela”, escreveu outro. “Você é a maior intérprete da música brasileira”, assinou um Rodrigo. “É muita emoção descobrir esse cantinho frequentado por você”, fizeram constar Renata e Almir, de Brasília. “Adorei encontrá-la aqui no Farta Brutos”, gravou Alice. “Um abraço à Dona Canô e em Caê”, anunciou alguém. “Uma das melhores coisas de Portugal foi ouvir histórias suas contadas pelo sr.Oliveira”, decretou Alê Mattos. “A sua música é uma inspiração para a minha vida”, deixou registrado um anônimo numa nota em inglês.

“Você é o máximo!”, resumiram os mineiros Ruy e Pat. “Você é uma deusa, você é Oxum…”, sentenciou um/a anônimo/a. “Senti-me, aqui, como em Santo Amaro da Purificação, tamanha a admiração e o carinho que és reverenciada”, escreveu Antero, um “fã português”, que, por via das dúvidas, deixou também o e-mail para o caso de Bethânia querer responder. “Que alegria poder me dirigir a você aqui em Lisboa”, introduziu, Heloísa Fischer, para logo declarar: “A música Vida tem sido uma guia ao longo da minha vida. Obrigado por ter gravado essa canção”.

Foi o escritor português António Alçada Baptista quem, nos anos 1990, levou Bethânia pela primeira vez ao restaurante. A simpatia dos Oliveira a fez voltar muitas vezes. “Ela não bebe vinho, bebe sempre uísque, e não come bacalhau, come rojões de porco e outras comidas assim mais pesadas”, conta Rogério. “Às vezes ela passa por cá, lê os bilhetes, mas não leva para casa, deixa-os no mesmo sítio”, acrescenta.

Há alguns anos Bethânia não aparece pelo restaurante, mas Rogério não tem dúvidas de que os bilhetes que se acumulam serão, um dia desses, vistos pela cliente predileta do seu pai. Quando voltar ao Farta Brutos, a cantora precisará de um bom tempo para ler todas as mensagens que lhe foram escritas nos últimos tempos. Missivas inspiradas, como a  que assina um Adriano: “Muito obrigado por nos fazer sentir um pouco mais de tudo que é humano”; e afetivas como as de um santo-amarense: “Bethânia, sou o André, filho da Anie, que foi sua colega de sala na escola primária em Santo Amaro. Mando-te um beijo e… muito sucesso, sempre”.

São muitos recados, mas no montinho de papel que ameaça transbordar do copo de vidro há um cartão que se destaca por trazer uma flor desenhada e um pedido de que ela envie uma carta ao remetente. Só que com jeito de trilha sonora: “Maria Bethânia, please, send me a letter”.

https://www.youtube.com/watch?v=SvsAOZv-QYY