Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, deixou registrado em verso que “todas as cartas de amor são/ ridículas”. Se o poema, popularizado com os anos, contém uma verdade, o que dizer das cartas de término de relacionamento?
Em 2004, a artista plástica francesa Sophie Calle recebeu uma extensa missiva de rompimento do então namorado, o escritor Grégoire Bouillier. Sem deixar de lado os clichês típicos do fim de uma relação (“o problema não é você, sou eu”), a carta, enviada por e-mail, conclui com a seca sentença: “Cuide de você”.
Diante da separação repentina, da frustração e do silêncio paralisante que por vezes se impõe em episódios semelhantes a esse, Sophie teve a ideia de promover um tour de force feminino para, em conjunto, responder Bouillier. O gesto, a princípio, pessoal, tornou-se performático: a artista convidou 107 mulheres para analisarem, comentarem, interferirem – esgotarem – a carta do ex-amado, de acordo com a profissão de cada uma delas , gerando assim mais de uma centena de interpretações possíveis.
JOGADORA DE XADREZ
Nathalie Franc
O preto desiste.
O jogo não poderia ter continuado? Olhemos com mais atenção.
Ele é o Rei preto. Ele é frágil, mal protegido por seus Peões, exposto às ameaças das peças brancas. Ele não está em xeque-mate, ele não está sendo diretamente atacado, mas isso poderia acontecer em breve. Ele não o será: ele está deitado, o que significa o final do jogo já perdido. (…)
PROFESSORA DE EDUCAÇÃO INFANTIL
Laure Guy
Dê um título para essa história.
1. Quem é o herói da história?
2. Qual é o elemento perturbador?
3. Como o herói quebra o pacto?
4. Como ele decide resolver seu problema?
5. Dê outro final para a história.
Ao lado de nomes reconhecidos como a da artista americana Laurie Anderson ou da atriz veterana Jeanne Moreau, estavam profissionais anônimas e de várias áreas: vidente, criminologista, jogadora de xadrez, etnóloga, bailarina, estilista, filóloga, paisagista, uma lista imensa e curiosa.
JUÍZA X.
Um jurista verá essa carta como a ilustração dos princípios fundamentais do nosso direito civil, pois ela se refere à conclusão e execução de contratos. O que é um contrato? É um acordo voluntário entre duas pessoas, cujo consentimento deve ser livre e ciente, para criar certa situação e organizar de forma precisa as regras segundo as quais ela funciona. Cada parte contratante entende que se beneficiará do contrato, mas, em troca, estará sujeita a certas obrigações.
OFICIAL DA INTELIGÊNCIA FRANCESA
Louise
Carta codificada de acordo com o sistema do código de Vigenère.
A palavra-chave escolhida para a codificação foi “Rompimento”.
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A réplica coletiva e caleidoscópica, que testemunha a diversidade e o poder feminino, serviu de mote para a instalação “Cuide de você” (“Prenez soin de vous”/ “Take care of yourself”) projetada para a 52ª Bienal de Veneza, em 2007.
Para que coubesse, no entanto, em uma única parede no pavilhão francês durante a Bienal, a artista fez um pequeno recorte no material.
A instalação veio para o Brasil em 2010, passando por São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, e seguiu seu percurso internacional circulando na Inglaterra, França, Canadá, Estados Unidos e Dinamarca, com uma configuração diferente para cada lugar.
Sem rejeitar ou censurar parte alguma, Sophie publicou integralmente as 107 respostas em livro de mesmo nome lançado, naquele ano, pela Éditions Actes Sud.
Se perguntam, e perguntam, sobre uma talvez exagerada exposição de sua intimidade, Sophie Calle rebate: “Amor, vida e morte – tudo é material mundano que serve à arte. Se você descarta a arte da vida privada, terá que eliminar também a poesia. Victor Hugo, Baudelaire e Verlaine usaram suas vidas pessoais como assunto de suas obras”. Há de se concordar. O que é a arte senão também um meio de sobreviver às cartas de término, demissão, abuso, crise que recebemos?
