A escritora neozelandesa Katherine Mansfield procura compensar a ausência ou a distância dos destinatários de suas cartas aproximando-se deles com uma espontaneidade que lhe permite até mesmo fugir da pontuação convencional.
Embora ajudem aos leitores a preencher algumas das lacunas pertinentes a sua obra, as cartas, multifacetadas como seus contos, criam outras lacunas que revelam cada vez mais o relacionamento problemático da autora com a realidade. Sua correspondência é tão intrigante que quem a lê sente-se incapaz de saber se a percepção do que escreve é exata.
Ao conferir significado às chamadas pequenas coisas, Mansfield tornou-se responsável pela renovação da escrita do conto na Inglaterra, onde decidiu viver desde a adolescência. Virginia Woolf, em seu diário, revelou que a única coisa de que já sentira inveja tinha sido da escrita de Katherine Mansfield. O registro foi feito depois da morte de Mansfield, que, em vida, havia deixado clara, por meio de cartas, sua admiração por Woolf.
Em 1920, quando Mansfield publicou Bliss and Other Stories e recebeu elogios no Times Literary Supplement, Woolf escreveu-lhe um bilhete declarando-se alegre e orgulhosa, ao que a autora dos contos respondeu dizendo, modestamente, que não merecia aquela carta. E ao despedir-se:
Eu me pergunto se você sabe o que suas visitas eram para mim – ou o quanto sinto falta delas. Você é a única mulher com quem eu gosto de falar de trabalho. Nunca haverá outra […]. Adeus, querida amiga (posso chamá-la assim?)
A relação entre as duas escritoras inclui um episódio até hoje não esclarecido completamente. Reporta-se a 1917, quando, juntas, visitaram o jardim de Garsington Manor, bela casa perto de Oxford, a convite da proprietária, Lady Ottoline Morrell, cujo marido era então membro do Parlamento e fizera de sua mansão um centro para encontro de artistas e intelectuais. Para relembrar a visita, Mansfield descreve o jardim da casa com pétalas de rosa morrendo ao sol e pessoas conversando sob o luar em carta de 15 de agosto de 1917 a Virginia Woolf:
Pergunto-me novamente quem vai escrever sobre esse jardim de flores. […] Haveria pessoas andando no jardim – vários pares – sua conversa seu ritmo lento [… ]. Um requintado perfume perturbador […]. Os pares devem ser muito diferentes e “excêntricos” ao extremo […]. Um tipo de conversa musicalmente própria para flores. Gosta da ideia? […] Preciso pensar nele assim que tiver tempo.
O estranho é que, a despeito de guardarem seus papéis com muito cuidado, a carta recebida sumiu do arquivo dos Woolf, conta o biógrafo Antony Alpers em The Life of Katherine Mansfield.
Sabe-se que só depois de conhecer Katherine Mansfield, a autora de Orlando escreveu seus primeiros contos, entre os quais “Kew Gardens”, em que rompe com sua forma tradicional de escrever. Neste seu conto sobre o Royal Botanic Gardens, Kew, os casais que passeiam encantados pelo jardim lembram os que aparecem na carta de Mansfield. A semelhança não deixa dúvidas de uma ligação entre a carta e conto. Coincidência? Note-se que Katherine pergunta-se quem poderia escrever sobre o jardim de Garsington Manor, e diz que precisa pensar nele.
É muito provável que Virginia Woolf tenha, de alguma maneira, conscientemente ou não, recorrido à descrição que Katherine Mansfield lhe enviou para compor o jardim de “Kew Gardens”. E, dessa vez, não seria o espaço físico de Oxford, mas o de Londres, onde se situa o famoso repositório de uma das maiores coleções de plantas do mundo.
O mistério na relação das duas pede uma explicação que suas cartas, de inegável qualidade literária, não nos dão, talvez porque Katherine não sabia viver sem ser escritora, mesmo em seus relacionamentos pessoais. Conversava como escritora. Escrevia cartas como se estivesse escrevendo um conto, daí a dificuldade em se estabelecer, na sua prática epistolar, a relação entre vida pessoal e ficção.