Não entendo.
Clarice Lispector
I
Uma experiência de arte pressupõe dois elementos simultâneos: a obra de arte em si e quem a experiencia. Quer uma pessoa com a mão no queixo numa sala de um museu, quer alguém num vagão de trem observando alguma dança, o irredutível está na possibilidade de algo entre esses dois elementos — a despeito do sentido excitado e daquilo que o excitou. Talvez seja mais relevante nos perguntarmos, diante dessa redução, que faz a arte, ou quando faz a arte, do que a tradicional questão: o que é a arte? Parece que o realmente interessante está nesse intermediário, na poeira que flutua entre aquilo que chamamos de arte e os nossos olhos. Todavia, pergunto aqui: o que nós fazemos com a arte?
Ensaio uma resposta embasada na correspondência: duas cartas enviadas por John Keats. A primeira é endereçada ao poeta Percy Bysshe Shelley, no mês de agosto, em 1820. Nela, há um comentário singular que provoca, a partir de uma questão tradutória, uma possível reflexão a respeito da interpretação. A segunda carta destina-se aos seus dois irmãos, George e Thomas Keats, mês de dezembro, ano de 1817. Essa carta tem maior reconhecimento, pois nela John Keats cunha um termo significativo para o debate acerca da interpretação: Negative Capability. Keats foi um reconhecido poeta romântico inglês; nasce em 1795 e falece, aos vinte e cinco anos, em 1821. Escreveu alguns dos mais reconhecidos poemas da literatura inglesa, como Ode on a Grecian Urn e Ode to a Nightingale.
Um diálogo entre dois poetas: John Keats escreve, em agosto de 1820, a Percy Shelley: “A modern work, it is said, must have a purpose, which may be the God”. O uso do termo “moderno” é, como quase costumamos cunhá-lo, como uma simples variação de “recente”. Parece que Keats, na Inglaterra, primeira metade do século XIX, já está sob o regime que Susan Sontag denunciou em Contra a interpretação: estamos presos à tarefa de defender a arte. O que nós fazemos, assim, é nos curvarmos diante da aparentemente inevitável necessidade de a arte atribuir um significado, que justifique sua criação e defenda sua existência. De fato, caso a premissa de Sontag seja verdadeira, tal tirania está em vigor desde os gregos; ainda assim, há na frase de Keats — tão taxativa quanto a da norte-americana — alguma possibilidade: logo após a vírgula está a consideração decisiva, may be. Interessa-me, em especial, a dupla possibilidade tradutória do termo “may”, uma vez que podemos dele depreender que este tal propósito de um trabalho tanto pode como deve ser Deus.

II
Partamos da primeira alternativa: a da possibilidade. Como intérpretes, segundo elemento, aquele que é arrebatado pela arte, aqueles pela qual a arte age sobre, qualquer indício de liberdade é prazeroso. Desse modo, o que fazemos é ensaiar alguma relação que tal arte possa ter com alguma coisa. A ideia de possibilidade, entretanto, não impõe qualquer relação necessária. Desdobra-se, assim, uma questão potente: a arte, em si, parece não comunicar nada. Uma vez que a arte apresenta a nós uma possível relação, tal relação somente existe, dentro da obra, enquanto potência. Sua existência, por outro lado, somente se afirma quando alguém, quando quem a interpreta, a constrói. Não haveria alguma imposição, pois a ação interpretativa, o significado atribuído ao objeto estético, dependeria totalmente daquele que a experiencia.
Um quadro exibido num corredor de um museu pode, assim, suscitar dois objetivos absolutamente distintos em duas pessoas que o observam. Tal quadro, ainda assim, poderia ser descrito: poderíamos notar sua moldura, sua composição, suas cores e sua perspectiva sem que nenhuma discordância decisiva surgisse. Tal fenômeno é facilmente compreensível, uma vez que as duas pessoas são dotadas de uma subjetividade, uma história própria, uma origem distinta e todos esses elementos — e muitos outros, certamente — são definitivos para os seus respectivos apontamentos interpretativos. Oscar Wilde, em prefácio ao Retrato de Dorian Gray, escreveu: “Quando críticos discordam, o artista está em acordo consigo mesmo”. Ainda assim, há uma instabilidade, um desconforto: qual a possível garantia de que não há, em vez da sutil interpretação, uma grosseira deturpação daquele objeto?
III
A concorrente é, certamente, mais estável: o dever. A obra de arte deve ao seu objetivo e, assim sendo, nossa tarefa diante dela é alcançá-lo. A experiência da arte parece assumir um caráter policial e, a nós, como detetives, cabe a tarefa de encerrar seu enigma. A alternativa parece tão antipática quanto absurda. Ainda assim, demoremos um pouco sobre ela: a saída soa um tanto romântica.
Um artista, gênio absoluto, confecciona um enigma elevado e cabe a nós, meros mortais leitores, desvendá-lo. Da torre de um alto castelo, concebidos sem grandes esforços, atiram-se alguns versos à masmorra. A obra é o intricado reflexo de uma subjetividade intrigante e a interpretação, assim sendo, é o caminho de volta: uma tentativa de alcançar tal intenção de tal sujeito. Esta imagem e a lógica que a rege é, decerto, tipicamente romântica. Keats é um dos últimos e maiores românticos ingleses. Falecido aos vinte e cinco anos, integra o movimento junto a Percy Shelley — parceiro de correspondência —, Lord Byron e Samuel Taylor Coleridge.
A ideia de um espírito superior e a da arte como uma forma de compreender parece muito antipática aos ouvidos contemporâneos. Ainda assim, a atitude diante da arte que se percebe, enquanto um método, não nos é tão distante. A compreensão de que há uma ideia final e absoluta em uma obra e que esta está presente em seu criador, que, uma vez perguntado, pode revelar sua intenção e encerrar o jogo interpretativo, está presente nas inúmeras entrevistas com diretores de cinema que dizem o que queriam dizer nas cenas finais de seus filmes. A busca pela gênese e pelo correspondente real das personagens de romances não é uma empreitada absolutamente desconhecida por nós. Muitas vezes se pergunta se tal autor não baseou seu narrador, seu protagonista ou antagonista, em seu pai, sua mãe ou algum amante passado. Diz-se, com frequência, que além ou a despeito das qualidades internas de um poema, de um quadro ou de alguma composição, há valor por quem o escreveu, pela situação que se encontrava, ou pelo impacto que tal obra pode ter. Em todas essas situações, absolutamente comuns ao tratamento contemporâneo, a arte é devedora de seu objetivo. E a interpretação, quase relegada, é, quando muito, nada além de uma forma o alcançar.
“A literatura, a produção literária, não é para mim de modo algum distinta ou sequer separável do homem e da organização; posso fruir uma obra, mas para mim é difícil julgá-la independentemente do conhecimento do próprio homem; e direi de bom grado: tal árvore, tal fruto” (presente em Sainte-Beuve, em Sobre meu método, na tradução de Annabella Blyth, com supervisão de Maria Elizabeth Chaves de Melo). A frase e, por conseguinte, o pensamento que a permite, não nos é absolutamente incomum. Não seriam absurdos, uma vez enumerados, os exemplos anteriores, que tal objetivo ou lógica seja aplicada num discurso contemporâneo. Há algum artista e a obra criada por ele é, com maior ou menor opacidade, uma ideia encerrada que remete ao criador. Contudo, a frase pertence a Charles Augustin Sainte-Beuve, crítico literário francês, e data de 1862. Autor de críticas semanais, reunidas sob o nome de Lundis — seus textos eram publicados às segundas-feiras —, Sainte-Beuve é tão impactante na literatura francesa que Marcel Proust, em 1908, começa a escrever um artigo no jornal Le Figaro que eventualmente torna-se um longo ensaio intitulado Contre Sainte-Beuve (Contra Sainte-Beuve), publicado postumamente em 1954.
IV
Estamos, pelo que parece, diante de um impasse: entre as alternativas expostas por Keats, há uma aparentemente instável e outra, mais comum, planificadora. Há, curiosamente, numa correspondência anterior do poeta, alguma possível observação notável. Numa carta endereçada aos seus dois irmãos, George e Thomas Keats, datada de dezembro de 1817, John escreve: “and at once it struck me what quality went to form a Man of Achievement, especially in Literature, and which Shakespeare possessed so enormously — I mean Negative Capability, that is, when a man is capable of being in uncertainties, mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact and reason.” [e, imediatamente, ocorreu-me que qualidade viria a formar um Homem de Conquista, especialmente em Literatura, e que Shakespeare possuía tão enormemente — quero dizer, Capacidade Negativa, isto é, quando alguém é capaz de estar em incertezas, mistérios, dúvidas, sem nenhuma irritável busca pelo fato e pela razão].
A Negative Capability é essa qualidade percebida por Keats onde a instabilidade percebida na alternativa da possibilidade é tão confortável como almejada. No vocabulário do poeta, chamemos de incertezas, mistérios e dúvidas. O que se engendra, assim, é uma percepção de que, talvez, tais elementos sejam constitutivos da interpretação. Parece que a interpretação seja, por fim, uma atividade que se bifurca: quando se relaciona a algo, aquilo que Keats chamara de objetivo, o faz em possibilidade, em potência; ou então, como tal relação não é nada além de possível, a interpretação encerra-se em si mesma, se configura como um eterno apontamento.
Sem dúvidas, parece que a interpretação qualificada por Keats não tem um destino; a ideia de objetivo parece mais uma denúncia, um triste diagnóstico da atual relação com as artes. Sempre há de resistir alguma lacuna, algum mistério, algum aspecto que passa ao largo e nós, leitores-intérpretes, somos incapazes de exauri-lo. Por fim, a experiência artística, que outrora compreendemos em seus dois elementos, é como um arrebatamento constante, como um mar cujas ondas não cessam, a despeito de nosso desejo de tranquilidade. Poderíamos, então, nos perguntar: a que se destina a interpretação?
V
Não nos esqueçamos de quem John Keats nomeou como enorme possuidor da tal Negative Capability: Shakespeare. Parece muito sintomático que seja um dramaturgo, afinal, como já notou Oscar Wilde, em prefácio ao Retrato de Dorian Gray: “Do ponto de vista do sentimento, a arte do ator é a exemplar.” Não à toa, sob a percepção da qualidade dos mistérios, dúvidas e incertezas, quando Dorian.
Gray parece se apaixonar, é por uma atriz, Sybil Vane.
Talvez a obra de Shakespeare mais decisiva para essa compreensão seja King Lear (Rei Lear), pois na terceira cena do quinto ato diz Lear em resposta a Cordélia: And take upon’s the mystery of things. Na consagrada tradução de Lawrence Flores Pereira: “E vislumbraremos o mistério das coisas”. Parece que o mistério, não somente um elemento constitutivo do ato interpretativo e da experiência de arte, é algo tão grande que por sua vez nos arrebata.
Ao passo que a arte nos arrebata, parece que o fim da interpretação, enquanto finalidade e término está na possibilidade de ser, por sua vez, arrebatada pelo mistério. Não parece que a interpretação tem um destino circunscrito e é interditado pelas incertezas e dúvidas: seu destino é a dúvida. A interpretação, segundo as qualidades apontadas por Keats, aponta para o mistério. Parece que a razão está com Susan Sontag: “Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte”.