Aos 22 anos, quando entrou em uma crise existencial, o cronista Carlinhos Oliveira não teve dúvidas: foi à Sears, comprar calças blue-jeans. A grande loja de departamentos, no prédio hoje ocupado pelo Shopping Botafogo, estava atualizada com a moda da juventude transviada, na década de 1950: “Por que me desligar do contexto espiritual-social no qual vigoram o rock’n’roll e James Dean e Françoise Sagan?”, escreve ele em carta ao jornalista Otto Lara Resende, no dia 26 de junho de 1957. Oliveira chegou à conclusão de que perdera a infância. Não queria, pois, desperdiçar a juventude. Tratou logo de renovar o guarda-roupa a fim de sintonizar-se com o espírito de rebeldia da época.
A carta de 26 de junho tinha, igualmente, um tom blue e integra o conjunto de mais dezoito escritas entre 1955 a 1982, conservadas no arquivo de Otto, sob a guarda do Instituto Moreira Salles. Amigos de redação em periódicos cariocas, os escritores estavam afastados desde a partida de Lara Resende para Bruxelas, em abril daquele ano, onde lecionou Estudos Brasileiros na universidade local até 1959. Carlinhos Oliveira não fora despedir-se do amigo no cais do porto. Guardava ressentimentos da época em que os dois trabalhavam na revista Manchete, onde Otto fora diretor por dois anos, a partir de 1954: “A verdade é que, desde que lá entrou, [Ferreira] Gullar foi pouco a pouco alcançando uma posição definida; senti-me, desta vez, ofendido e rejeitado, pois estavas apontando uma superioridade de Gullar sobre mim, que não havia”, segue ele, na mesma carta.
O texto ganha contornos mórbidos quando o remetente volta a citar o astro hollywoodiano:
Tenho a idade de um rapaz, mas os problemas são piores; sofro por todos eles, e como se não bastasse, ainda sofro por mim. Se me identifiquei com James Dean, não foi pela blusa vermelha que ele usava, e sim por sermos ambos duas pessoas sem a menor possibilidade de sobrevivência.
Insatisfeito com a vida que levava nas redações, o jovem pensou que não daria para nada. O fado por ele anunciado, entretanto, não se concretizaria.
José Carlos Oliveira nasceu em 18 de agosto de 1934 em Vitória, capital do Espírito Santo. Tornou-se célebre através de sua coluna no Jornal do Brasil, onde escreveu de 1961 até 1984, quatro vezes por semana. Na crônica “Contra a censura, pela cultura” cunhou o termo Patetocracia a fim de criticar a ditadura, e não parou aí: seus textos publicados ao longo de 1968, com observações argutas sobre o regime militar no país, seriam reunidos no livro póstumo Diário da Patetocracia, de 1995. Escreveu também o romance Terror e êxtase, de 1978, adaptado por Antônio Calmon para o cinema, no ano seguinte, com grande sucesso.
Carlinhos Oliveira foi um personagem de difícil classificação. Tragicômico, boêmio, sensível e galanteador, teve infância humilde, como revela a carta de 4 de outubro de 1955, a respeito do cotidiano de seu irmão mais novo, escrita durante uma viagem à sua cidade natal.“Em minha casa o rádio não se apaga (os pobres não suportam o silêncio) e meu irmãozinho tem a infância mais triste do mundo, rodeado de mulheres semi-solteironas e indo aos filmes nacionais. Ele terá gênio; a miséria há de redimi-lo amaldiçoando-o”.
No entra e sai das redações dos principais veículos do Rio de Janeiro, Carlinhos Oliveira tentou conseguir empregos, recorrendo ao contato do “Velho Otto”. À sombra de um calor tórrido de verão carioca, misturou delicada melancolia a doses de desespero, no dia 13 de fevereiro de 1959: “Preciso de dois empregos, sem o que não poderei recomeçar minha análise, nem me casar, nem viver decentemente. Existe na Radio Roquete Pinto uma vaga de redator; você conhece alguém que mande lá?”. Antes de voltar ao Brasil para assumir o cargo de advogado na Procuradoria do Distrito Federal, Otto Lara Resende recebeu mais uma carta de fevereiro de 1959. Dessa vez, o calor levou Oliveira a um estado de espírito diferente. Seu humor escancarou-se em descrições ardentes das beldades do verão carioca:
Ontem fez um sol lindo e fomos à praia e a água estava tépida e havia uma argentina de corpo maravilhoso com dois lenços coloridos cobrindo as partes principais e eu fiquei olhando os quadris largos e os pequenos seios ocultos e imaginei a parte principal.
O remetente interrompe a longa frase marcada pela reincidente conjunção “e” para terminar o registro de seu deslumbramento em tom confessional. “Senti uma vontade fremente de adormecer em cima daquela mulher cor de cacau cujas axilas rapadas, que eu às vezes via, valiam por dois sexos quentes e perfumados de desodorante blue grass”, escrevia ele, conhecedor da fragrância floral desse clássico de Elizabeth Arden.
Mas não só de confissões ardentes vivia o famoso cronista do JB. Deixando de lado as axilas rapadas, um ano antes, quando a crítica literária recebeu mal a crueza da infância abordada nos contos de Otto, Boca do inferno, de 1957, Oliveira, solidário, tentou animar o amigo: “Espero que a repercussão causada não o tenha desanimado. Você bem sabe que o livro é bom”. De fato, em 2014 a obra seria reeditada com estudo consagrador do professor e crítico Augusto Massi.
As impressões literárias de Carlinhos Oliveira voltam a aparecer em carta de 8 de novembro de 1958: ele não titubeou ao espinafrar Samuel Beckett, escritor e dramaturgo irlandês, mais conhecido pelo enredo absurdista de Esperando Godot, de 1953: “Isto é um farsante. Escreve bobagem na suposição muito correta de que os otários existem.” Sem freio, arremata a crítica com mais acidez: “O otário, no caso, é você, que sabe desde o início que S.B. não chegará a parte alguma e continua lendo. Há alguma razão edificante para Beckett escrever? Não há. É escritor da moda, de avant-garde, como se diz, e depressa será esquecido”. Oliveira escorregou, decerto, na previsão.
A última carta é de 1982. Carlinhos Oliveira mostra-se saudoso do velho amigo: “Gostaria de encontrá-lo para conversar. Sem tempo de terminar o papo e sem necessidade de ser um papo solene. Apenas para revivermos os assuntos que nos interessavam antes e os que nos interessam agora”.
Na folha de rosto do exemplar da autoficção de Oliveira, O pavão desiludido, que pertenceu a Lara Resende, lê-se: : “Missa de 7º dia por alma do Carlinhos: 23.4.1986.” Dentro do livro, um recorte do Caderno B do Jornal do Brasil: “Há cinco anos sofria de uma pancreatite crônica e há dois, depois de uma consulta médica em Paris, soube que lhe restava apenas uma curta sobrevivência”. Otto Lara Resende sobreviveria ao amigo por mais seis anos. Morreu, aos 70, após complicações causadas por uma cirurgia de hérnia de disco.