Tempos diferentes podem ser reconhecidos pelas formas distintas de comunicação e sociabilidade quando comparados aos dias de hoje. As cartas foram, até os anos finais do século XX, fundamentais para a manutenção do contato entre pessoas distantes. No entanto, entre a população não-heterossexual, o uso da correspondência assumiu um importante papel, viabilizando uma interação social entre figuras que não podiam, em um primeiro momento, manter contato pessoalmente. 

Cartas do leitor, da leitora ou da pessoa que lê

O século passado foi marcado pelo crescimento e fortalecimento da sociabilidade e da militância LGBT+. Com o aumento populacional nos grandes centros urbanos no Brasil e no mundo, gays, lésbicas, bissexuais e transexuais passaram a encontrar nas cidades espaços seguros para exercer sua sexualidade livres do julgamento de familiares e amigos próximos. O anonimato característico das metrópoles permitiu para parte da população não heterossexual brasileira a organização de redes de sociabilidade e militância. Entretanto, longe do cotidiano das grandes cidades, homens gays na busca por alternativas de conexão com seus pares, acabaram por encontrar no uso da correspondência uma forma de manter contato com o distante horizonte da sociabilidade presente nas cidades. 

Presentes nos principais periódicos de circulação nacional durante o último século, as seções de correspondência dos leitores ocupavam um espaço fundamental de comunicação com o corpo editorial de jornais e revistas brasileiros. Nas cartas publicadas, era possível identificar, ainda que de maneira superficial, o perfil do público em questão. No caso dos periódicos voltados para o público gay, era através das cartas à redação que os leitores conseguiam corresponder-se com outras pessoas de diferentes regiões do país.

Periódicos para o público gay

No Brasil, principalmente na segunda metade do século XX, foram criados diversos periódicos voltados para o público gay. Salvo exceções, tratava-se de publicações de homens homossexuais falando aos seus semelhantes. A maior parte dos jornais e revistas encontrou desafios de continuidade e encerrou os trabalhos pouco tempo após seu lançamento. Foi o caso do Snob, do Entendidos e do Gente Gay, que por falta de financiamento ou experiência dos seus editores, não conseguiram permanecer por muito tempo nas bancas. 

No entanto, há dois casos que, dadas as dificuldades postas, alcançaram alguma longevidade no mercado editorial brasileiro produzindo conteúdo para homens homossexuais: O Lampião da Esquina e a revista G Magazine. Mesmo com perfil distinto, os periódicos possuem certas semelhanças: reportagens e editoriais abordando temas sensíveis à comunidade gay, dicas de eventos, locais de pegação e uma badalada seção de cartas dos leitores. 

Conhecendo Lampião e G Magazine

O Lampião, editado mensalmente de maneira ininterrupta entre 1978 e 1981, tinha como objetivo dar visibilidade à população gay na imprensa, tirando-os do “gueto”, assim como destruir a imagem padrão do homossexual masculino. Representante de uma outra geração de publicações voltadas para o público gay, a revista G Magazine foi editada entre 1997 e 2013. Além de reportagens voltadas para temas de interesse do público homossexual, o periódico apresentava ensaios fotográficos de homens nus que alcançaram uma visibilidade jamais vista em publicações feitas para homens gays: a revista tinha tiragens médias de 90 mil exemplares, chegando a atingir 150 mil exemplares em seu ápice. Em ambos os casos, as cartas enviadas pelos leitores comentavam, elogiavam e rebatiam artigos que discutiam questões relacionadas ao cotidiano homossexual no Brasil. 

Em seções separadas das cartas dos leitores, tanto o Lampião quanto a G Magazine cultivaram espaços próprios para que os leitores publicassem breves descrições próprias acompanhados dos perfis com os quais pretendiam corresponder. Batizadas de “Troca-troca” e “Procurados”, tais páginas eram majoritariamente ocupadas por homossexuais que buscavam estabelecer algum contato com outros homens gays via carta, telefone ou até mesmo pessoalmente. Por intermédio da redação do jornal, pessoas que não dispunham de locais seguros para exercer sua sexualidade de maneira livre e segura, ou quisessem uma outra alternativa  na busca por parceiros, optavam por procurar correspondentes através de seções destinadas a isso.

A trajetória de pessoas não-homossexuais

As cartas enviadas às redações destes periódicos dão ênfase a uma outra sociabilidade, distinta da online com a qual estão familiarizados os homens gays nos dias de hoje. Na falta de aplicativos que possibilitassem conhecer outros homens para amizades, namoro ou apenas sexo casual, as mensagens enviadas serviam como alternativa para, de alguma maneira, viver e compartilhar sua sexualidade fora do eixo Rio-São Paulo. Dos românticos aos preconceituosos, passando pelos mais diversos fetiches, tais colunas apresentam uma espécie de espaço destinado à pegação homossexual na imprensa brasileira. 

No estudo da trajetória de pessoas não heterossexuais é fácil perceber que, mesmo com a opressão sofrida em diferentes períodos históricos, tais indivíduos nunca ousaram deixar de viver seu prazer dentro das possibilidades. Para homens de todo o país que precisavam esconder sua sexualidade, periódicos como o Lampião e a G Magazine cumpriram um papel fundamental para aproximar pessoas que, na necessidade de ocultar seus desejos, encontravam nas colunas de cartas à redação uma alternativa para também viver. Longe do advento da internet, estes periódicos e essas seções foram essenciais para a trajetória dessas pessoas. Como concluiu o anônimo B. em carta enviada em dezembro de 2004: “Com a G eu me sinto bem sendo gay. Muito grato”.

Lampião da Esquina. Abril de 1981. Página 2.