“Paixão à primeira escuta” foi como a pianista brasileira Jocy de Oliveira definiu seu encontro avassalador com o compositor italiano Luciano Berio, com quem teve um relacionamento amoroso e artístico por cerca de dez anos. Eles se conheceram no Festival de Tanglewood, nos Estados Unidos, em 1960, quando ela tocava com a Sinfônica de Boston e ele era o compositor residente. Na ocasião, Berio apresentou sua obra Circles, cuja escuta Jocy revela, em Diálogo com cartas, ter sido um “momento singular” e “extremamente marcante”.
Nesse livro, em que está publicada a correspondência da pianista com figuras ilustres da música como Igor Stravinsky, há a reprodução da primeira carta enviada por Berio a ela, após o encontro em um modesto hotel ao lado do Carnegie Hall, em Nova York. Obrigado a levá-la ao aeroporto, onde Jocy pegaria o avião de volta ao Brasil, o compositor, tomado pela paixão, segue para Pittsburg, de onde lhe escreve com a emoção da despedida.
Para Jocy, cartas como esta que reproduzimos aqui, não só tratam de um encontro essencial em sua vida, como ajudam a pensar a difícil relação entre vida e arte, mostrando que a experiência vivida pelo artista tem sempre uma influência no momento inspirador da criação.
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Pittsburg, 18 de fevereiro de 1961
Jocy,
Chegamos ontem a Pittsburgh, após 10 horas de viagem. Toda essa empreitada torna-se cada vez mais detestável e cansativa – a única coisa agradável que me resta é dirigir nosso “amigo” caminhão, aquele mesmo que você conheceu, no qual esqueceu os presentes para o seu filho (ainda estão aqui, comigo, no lugar em que você sentava) e com o qual viajaremos pelos “Andes do Brasil”. Cara Jocy, sem você, qualquer viagem de caminhão –, assim como, por sinal, qualquer outra coisa, fica completamente desprovida de sentido. Preferi esperar alguns dias antes de lhe escrever – e faço isso agora correndo, uma hora antes do concerto – para ver se tudo isso era verdadeiro e se um estado de alma diferente daquele com o qual vi você partir ainda era possível. Minha cara Jocy, desde quinta à noite, depois do seu último sinalzinho de adeus no aeródromo, não deixei você por um instante sequer. Gostaria muito de ter a calma solene e viril que seria necessária numa situação dessas, toda feita de impossibilidades, mas, sinceramente, não sei mais o que fazer.
Pela primeira vez na minha vida parece-me que estou completamente ultrapassado pela emoção. Se não tivesse horror à retórica, diria que estou desesperado e impotente. A alegria de guardar você dentro de meu coração e a dor pela sua partida (que nunca me pareceu possível) e por tudo o que ainda nos espera se tornaram uma única coisa na qual me perco como um idiota sem encontrar nenhum fio condutor.
Tudo está profundamente mudado dentro e perto de mim.
Depois da longa viagem de ontem – e durante a viagem também –, fiquei acordado quase toda a noite para tentar lhe dizer com mais lucidez tudo o que a emoção me impedia de lhe exprimir nestes últimos dias. Mas até mesmo o sentido das palavras me parece profundamente mudado, e estou com certo medo de usá-las agora: medo – que loucura! – que possam reduzir todo o meu amor por você a uma simples recordação sentimental.
Por isso, talvez, a coisa que mais desejo agora é estar só, completamente só com todos os meus pensamentos por você e tentar conservar diferentemente, do modo mais lúcido possível, todas as descobertas, as emoções destes últimos dias e sua imagem. Você, com sua boquinha de menino sempre surpresa.
Terça e quarta que vêm, estarei em NY para uma outra gravação e irei à 3a Ave para ver se você me escreveu.
Um beijo muito forte
Luciano
Jocy de Oliveira. Diálogo com cartas. São Paulo: SESI-SP editora, 2014, pp. 148-149.