Em julho de 2016, Leonard Cohen recebeu um e-mail de Oslo. Era um amigo de Marianne Ihlen – sim, a personagem de So long, Marianne – avisando que ela estava morrendo. Câncer. Embora o poeta canadense e sua musa norueguesa nunca tenham cessado de se corresponder, a doença jamais havia sido mencionada nas conversas.
Cohen escreveu-lhe logo um e-mail de despedida: “Querida Marianne, eu estou apenas um pouco atrás de você, perto o bastante para pegar sua mão. Este meu velho corpo desistiu, assim como o seu (Cohen também tinha leucemia). Eu nunca esqueci o seu amor e a sua beleza. Mas você sabe disso, não tenho mais de falar. Faça uma viagem segura, velha amiga. Vejo você na estrada. Amor e gratidão infinitos. Seu Leonard.”
Dois dias depois, chegou outro e-mail de Oslo. “Quando lemos alto a sua carta, ela sorriu como só Marianne sorria”, descrevia Jan Christian Mollestad, o mensageiro, que seria um dos produtores executivos de Marianne & Leonard: Words of love, dirigido por Nick Broomfield em 2019. O documentário tem filmada essa comovente leitura.
Marianne morreu em 28 de julho de 2016, aos 81 anos. A história da despedida foi contada primeiramente por David Remnick, na revista New Yorker, em perfil de Cohen publicado em meados de outubro. O gancho jornalístico era o lançamento do álbum You want it darker. Seria o último a aparecer enquanto Cohen vivia. Ele morreu em 7 de novembro de 2016, aos 82 anos. Se Marianne esticou a mão, tocou a dele.
Em 1960, Cohen não sabia muito bem o que fazer da vida. Seus livros de poesia não vendiam, e ele ainda não se pensava como cantor. A chuva incessante em Londres, onde morava, também não ajudava. Tinha 26 anos e contemplava o suicídio. Para tentar conseguir uma bolsa do Canadá, formulou algo vago sobre antigas capitais do mundo. Comprou passagem para Israel e Grécia. Conheceu Jerusalém e Atenas. Ficou nesta só um dia. Pegou um barco para Hidra, ilha então a cinco horas de viagem ao sul. Cohen se apaixonou. Compraria uma casa, graças à herança de uma avó, e conheceria Marianne, outra expatriada na ilha, abandonada com o filho bebê pelo marido escritor.
“Marianne é perfeita”, escreveu Cohen numa carta ao poeta Irving Layton. O canadense e a norueguesa passariam juntos a maior parte da década de 60. Depois, atravessaram a vida trocando cartas, e-mails e, em mão única, convites para shows. Marianne se tornaria a mais famosa de suas musas não apenas por So long, Marianne, de 1967, mas também por Hey, thats’s no way to say goodbye e Bird on the wire. Ela ainda inspiraria Moving on, canção no álbum póstumo de Cohen, Thanks for the dance, de 2019.
Tendo em vista o estilo que Cohen afinal vislumbrou para ganhar a vida – mais recitando que cantando poemas, sobre um sofisticado e discreto fundo instrumental – pode-se facilmente imaginar letras de canções como cartas e cartas como letras de canções. É o caso de So long, Marianne. Nela, Cohen se dirige à musa, embora formalmente a letra não se apresente como uma carta. “Venha para a janela, minha queridinha/ Eu gostaria de tentar ler a sua palma/ Eu costumava pensar que era um tipo de garoto cigano/ Antes de deixar você me levar para casa”, diz a primeira estrofe.
O clima da canção é intrigante, mesmo ouvida cinquenta e três anos depois de ela aparecer no seu álbum de estreia, intitulado simplesmente Songs of Leonard Cohen. Comunica-se, ao mesmo tempo, despedida, nostalgia e gratidão; é um folk incomumente alegre para o Padrão Cohen e extraordinariamente triste para qualquer um que preste atenção aos versos. Décadas de exegese não explicariam por que a separação circunstancial já soa como um último adeus, que só chegaria, vimos, quatro anos atrás.
No refrão, animado pela eventual presença de um coro feminino, Cohen propõe: “Então, até mais, Marianne/ É tempo de começarmos a rir/ E chorar e chorar e rir sobre isso tudo de novo.” Trata-se de uma aceitação serena dos altos e baixos da vida, harmonizando as duas crenças que ele combinou, o judaísmo e o budismo, o talmude e o zen. Um pouco adiante na música que antes iria se chamar Come on, Marianne, o poeta menciona a correspondência regular com a amada: “Todas as suas cartas dizem que você está do meu lado agora/ Então por que eu me sinto só?”
Marianne estava também na faixa seguinte de Songs of Leonard Cohen, chamada Hey, that’s no way to say goodbye. Nela, novamente a separação física, não espiritual: “Você sabe que o meu amor está com você, assim como o seu amor fica comigo (…). Mas não vamos falar de amor e de correntes e de coisas que não podemos desatar.” No álbum seguinte, Songs from a room, de 1969, Marianne surgiria sorrindo, gloriosa, na foto da contracapa, tirada no quarto de Hidra, e na faixa de abertura, Bird on the wire. “Eu juro por esta canção/ E por tudo que fiz de errado/ Eu vou te recompensar”, promete Cohen. O tom epistolar se manifesta mais uma vez, sendo a própria canção a recompensa.
No seu terceiro álbum, Songs of love and hate, de 1971, Cohen apresentaria outro clássico, Famous blue raincoat. Desta vez, era explicitamente uma carta. “São quatro da manhã, final de dezembro/ Estou escrevendo agora só para saber se você está bem”, inicia o autor da correspondência. Desta vez, inclusive assina a carta: “Sinceramente, L. Cohen.” Entretanto, apesar da aparência confessional, não é possível traçar uma linha reta entre o conteúdo e a vida do poeta, que há anos namorava tanto Marianne quanto Suzanne Elrod (nada a ver com Suzanne, a canção), afinal mãe de seus dois filhos.
Nunca nomeado, o destinatário da canção é o vértice do triângulo com uma certa Jane, que, depois de voltar para o narrador, “não é mais mulher de ninguém”. Há a tentativa, por parte deste “L. Cohen”, de não guardar mágoa ou rancor. “E o que eu posso te dizer, meu irmão, meu assassino?/ O que eu poderia dizer?/ Acho que sinto tua falta, acho que te perdoo/ Estou feliz que estiveste no meu caminho.” Um pouco adiante, o narrador até propõe dividir o amor de Jane. “Se você um dia voltar, por Jane ou por mim/ Bem, seu inimigo está dormindo, e sua mulher está livre.”
A enfatizar a diferença entre o autor e o seu eu lírico, a “famosa capa de chuva azul” pertencia ao próprio Cohen – comprada na Burberry em Londres, em 1959 – e foi roubada do apartamento de Marianne em Nova York, no começo dos anos 70. A “famous blue raincoat” surge no corpo do rival, na última vez em que ele é visto, “muito envelhecido”. Está rasgada no ombro, detalhe pungente. Se se pode dizer que So long, Marianne era “animada”, entre aspas, a lenta Famous blue raincoat era definitivamente sombria. Cohen a recita como se cada palavra curta lhe doesse: “And… Jane… came… by… with a lock of your hair…” O coro feminino, aqui, ressalta a solidão do barítono.
Cohen teve crises de depressão durante toda a vida. A David Remnick, na New Yorker, declarou estar pronto para morrer. Na coletiva de imprensa para divulgar You want it darker, dias depois, proclamou que pretendia viver até os 120 anos.
Assista ao vídeo de So long Marianne
Venha para a janela, minha querida
Eu gostaria de tentar ler sua palma da mão
Eu achava que eu era algum tipo de garoto cigano
Antes de te deixar me levar para casa
Então até logo, Marianne, é hora de começarmos
A rir e chorar e chorar e rir novamente sobre tudo
Bem, você sabe que eu adoro viver com você
Mas você me faz esquecer de muita coisa
Eu esqueço de rezar para os anjos
E então os anjos se esquecem de rezar por nós
Então até logo, Marianne, é hora de começarmos
Nos encontramos quando éramos quase jovens
Lá no parque verde lilás
Você se agarrou a mim como se eu fosse um crucifixo
Enquanto seguimos ajoelhados pela escuridão
Então até logo, Marianne, é hora de começarmos
Suas cartas todas dizem que você está ao meu lado agora
Então por que eu me sinto solitário?
Estou postado num precipício e sua tênue teia de aranha
Está atando meu tornozelo a uma pedra
Então até logo, Marianne, é hora de começarmos
Por ora, eu preciso do seu amor escondido
Sou frio como uma lâmina nova de navalha
Você partiu quando eu lhe disse que estava curioso
Eu nunca disse que eu era valente
Então até logo, Marianne, é hora de começarmos
Oh, você realmente é encantadora
Vejo que você foi e mudou seu nome novamente
E exatamente quando eu escalei todo este lado da montanha
Para lavar minhas pálpebras na chuva!
Então até logo, Marianne, é hora de começarmos
Estou escrevendo agora somente para ver se você está melhor
Nova York está fria, mas eu gosto de onde estou vivendo
Há música no Clinton Street durante toda a noite
Ouvi dizer que você está construindo sua pequena casa nos confins do deserto
Você não vive por nada agora, espero que você esteja mantendo algum registro
Sim, e Jane veio com um cacho de cabelo seu
Ela disse que você deu a ela
Naquela noite em que você planejava ficar limpo
Algum dia você ficou limpo?
Da última vez que vimos você, você parecia bem mais velho
Sua famosa capa de chuva azul estava rasgada no ombro
Você foi para a estação pegar cada trem
E você voltou para casa sem Lili Marlene
E você tratou minha mulher como uma faísca de sua vida
E quando ela voltou para a casa, ela não era esposa de ninguém
Bem, eu vejo você com uma rosa nos dentes
Mais um ladrão cigano
Bem, eu vejo Jane acordada
Ela manda lembranças
E o que eu posso te dizer meu irmão, meu assassino
O que eu poderia te dizer?
Eu acho que sinto sua falta, eu acho que eu te perdoo
Estou feliz que você se pôs no meu caminho
Se um dia você vier aqui, pela Jane ou por mim
Bem, seu inimigo está dormindo e a mulher dele está livre
Sim, e obrigado, pelos problemas que você tirou dos olhos dela
Eu pensei que eu estava lá por bem, logo eu nunca tentei
E Jane veio com um cacho de cabelo seu
Ela disse que você deu a ela
Naquela noite que você planejava ficar limpo
Sinceramente, L. Cohen
Para ouvir essas e outras Cartas na Música, acesse a playlist da Rádio Batuta: https://radiobatuta.com.br/selecao/cartas-na-musica/