Corria o 13 de maio de 1877. Piotr Ilyich Tchaikovsky estava numa reunião social na casa do meio-soprano Elisabeta Andreievna Lavrovskaya, em Moscou. O marido da anfitriã sugeria tema após tema para uma nova ópera que o compositor almejava escrever assim que, em breve, concluísse a sua Quarta Sinfonia. Um despropósito atrás do outro (“princesas etíopes, faraós, envenenamentos, afetos de toda espécie”) até que a própria cantora comentou, quase casualmente: “Por que não usamos Eugene Oneguin?”

Tchaikovsky gelou. Achou a sugestão inatingível e nada comentou. Mais tarde, jantando sozinho numa taberna, ele voltou a pensar no romance em 5.541 versos que Alexander Sergeyevich Pushkin, o poeta nacional, publicara quase meio século antes. Podemos presumir que havia álcool à mesa. A adaptação, então, não mais lhe pareceu além de seu talento. Arrumou um exemplar, atravessou a noite lendo-o, esboçando ideias, atos e cenas. No dia seguinte, procurou o ator Konstantin Stepanovich Shilovsky em busca de ajuda no libreto.

Decerto o impulso era mais lírico do que dramático. Foi assim que Eugene Oneguin, a ópera, ganharia a humilde autodescrição “cenas líricas”. Na mesma carta de 18 de maio em que enumerara as sandices propostas pelo marido de Elisabeta, Tchaikovsky dizia ao irmão Modest Ilyich: “Não me engano: sei que esta ópera terá poucos efeitos cênicos e pouco movimento. Mas a inspiração poética, o humanismo e a simplicidade do enredo, em combinação com um texto genial, substituem completamente estes defeitos”.

Estava certo, certíssimo.

Em janeiro de 1878, em carta a um de seus mais brilhantes ex-alunos no Conservatório de Moscou, Serguei Ivanovich Taneyev, Tchaikovsky falava da ópera já composta: “Se existe música escrita com entusiasmo sincero, com amor ao enredo e às personagens, é a música de Oneguin. Experimentei um deleite intraduzível enquanto a escrevia” (as cartas são aqui reproduzidas de Piotr Tchaikosvky – Biografia, de Alexander Poznansky, editado no Brasil pela casa G. Ermakoff, em 2012, e vertido do russo por Alexey Lazarev).

A correspondência de Tchaikovsky com seus parentes, seus amigos e seus amantes, além da elusiva mecenas Nadezhda Filaretovna von Meck, é franca e vasta o bastante para que conheçamos muitos aspectos de sua vida, inclusive o permanente pavor de vir a ter a homossexualidade revelada. Se a Rússia de Vladimir Putin, no século XXI, não é segura para um gay, imagine-se a Rússia do czar Alexandre II, no século XIX.

Foto: Autor desconhecido. Século XIX. (Acervo Getty Images)

No mesmo maio de 1877 em que Eugene Oneguin lhe surgiu como um próximo projeto exequível, o compositor já estava às voltas com as cartas que uma apegada ex-aluna do conservatório, Antonina Ivanova Miliukov, lhe enviava, professando-lhe amor eterno. Solteirão aos 37 anos, Tchaikovsky acabaria cedendo às pressões – da apaixonada Antonina, sim, mas sobretudo da sociedade – e agradaria ao pai octogenário. Como era de se prever, o casamento nada duraria, dada a repulsa física e intelectual que sentia pela esposa. O fantasma de uma chantagem é que se arrastaria até o fim de sua vida.

Naquele momento, porém, Tchaikovsky enxergou um paralelo entre a própria recusa em levar a sério a mulher nove anos mais jovem e o desprezo que o personagem-título – um cosmopolita “homem supérfluo”, como se dizia na Rússia, um playboy – sentia por Tatyana, sonhadora garota do campo. Nem sempre o Romantismo exagera em enxergar relações entre vida e obra. Aliás, o compositor se viu como um Oneguin piorado, mas também se identificou com Tatyana. Ela é a verdadeira protagonista da ópera, a ponto de ter sido sugerido, a posteriori, que o seu título deveria ter sido Tatyana Larina.

Tanto o romance em versos de Puchkin quanto a ópera de Tchaikovsky têm seu centro emocional na carta que Tatyana envia para Oneguin. É um momento tão impressionante que foi bem aí que, ainda sem o libreto, ele começou o trabalho de composição. Essa peça para soprano (Puskai pogibnu ya, no pryezhede, ou “Morro, mas antes”) se tornaria popular, dois séculos afora, simplesmente como a cena ou a ária da carta. Nela, a insone Tatyana canta: “(…) Escrevo a ti… Preciso dizer mais? Há mais que eu possa dizer? Sei que és livre agora para punir-me com teu desprezo. Mas tu… Se tens uma gota de piedade pela minha infeliz situação, não me abandonarás (…)”.

A música correspondente – que dura em torno de 14 minutos no palco – espelha as oscilações no estado de espírito de Tatyana: entre cantos e recitativos, ela é chorosa, esperançosa, fatalista, apaixonada. Tchaikovsky sabia como escrever cartas similares.

Críticos costumam destacar o modo como a sua música comenta o que diz Tatyana, ao mesmo tempo em que expressa o indizível, ou seja, as entrelinhas da carta e do seu torturado processo de escrita. Oboé, flauta, clarinete e trompa se alternam em torno da voz do soprano, sublinhando-lhe a voz, sublinhando-lhe a ingenuidade, a candura. Não só: no terço final, a música “amanhece” gloriosa para a protagonista, que se inflama.

Na estreia da ópera, em 29 de março de 1879, o papel de Tatyana coube ao soprano Maria Klimentova-Muromtseva. Ela tinha 22 anos, estava verde e era, como todo o resto do elenco e dos músicos, estudante do familiar Conservatório de Moscou. Este havia sido o desejo de Tchaikovsky: ter Eugene Oneguin produzido por gente jovem, de carne e osso, intocada pelos vícios dos profissionais. Seu amigo Nikolai Grigorievich Rubinstein foi o maestro na ocasião. Sobrevivem fotos posadas dessa montagem.

A despeito de críticas maldosas, em especial as do compositor César Cui, a ópera viria a se tornar um enorme sucesso, não apenas na Rússia como no resto da Europa. Ela marcou a passagem de Tchaikovsky de compositor-para-compositores-e-para-habitués a ídolo popular. Trouxe-lhe conforto financeiro até a morte, aos 53 anos, em 1893, em circunstâncias nunca inteiramente a salvo de dúvidas razoáveis. Doença ou suicídio?

A música de Eugene Oneguin é toda, toda deslumbrante. Além da ária de Tatyana, no primeiro ato, há outro altíssimo ponto vocal, a ária de Lensky, no segundo ato. Lensky espera Oneguin para o duelo provocado por mero tédio pelo agora ex-amigo. O que o poeta canta não é, claro, uma carta. Entretanto, na expectativa do confronto, ele especula se sobreviverá ou não e se, neste caso, sua namorada Olga, irmã de Tatyana, visitará o seu túmulo. A ária Kuda, kuda, kuda vi udaililis (ou “Onde, onde, onde estão vocês…”) funciona como o rascunho de um bilhete de despedida, com o que neles há de trágico e de patético. Novamente, a orquestração de Tchaikovsky funciona quase como um coro grego diante de uma tragédia.

“(…) O mundo me esquecerá”, canta Lensky, interpretado por um tenor. “Mas tu… Tu! Olga… Dize. Tu virás, bela jovem, derramar uma lágrima sobre a precoce urna e pensarás: ele me amou! Apenas a mim ele dedicou a triste aurora de sua vida tormentosa!” Não custa lembrar que o poeta Pushkin morrera num duelo, em 1837. Ainda outra demão de coincidências românticas para Eugene Oneguin.

Assista ao vídeo de Puskai pogibnu ya, no pryezhede (com legendas)

Assista ao vídeo de Kuda, kuda, kuda vi udalilis (com legendas)

Para ouvir essas e outras Cartas na Música, acesse: https://radiobatuta.com.br/selecao/cartas-na-musica/