Muitos artistas constroem a carreira sem atingir uma identidade de contornos precisos. Não é o caso de Djavan. O compositor, de 73 anos, fundou uma espécie de subgênero particular dentro da MPB. Ao menos, a originalidade do cantor alagoano imprimiu um estilo (não repetitivo) às canções, que agregam um caleidoscópio de tendências musicais. “A carta”, faixa do álbum Bicho solto (1998), serve como expressão do neologismo “djavanear”, criado por Caetano Veloso, em resposta à similar homenagem do compositor de “Sina”.
Em “A carta”, Djavan, com o auxílio de Gabriel, o Pensador, sugere um modus vivendi representado pelo significante “vírus”, como metáfora. “É esse o vírus que eu sugiro que você contraia/Na procura pela cura da loucura,/Quem tiver cabeça dura vai morrer na praia”, diz o refrão. Nada de pandemia ou covid-19, é bom ressaltar. Dessa vez, o termo apresenta-se em tom positivo, assim como ocorre em outros contextos literários. Afinal, a poesia dá ao poeta o direito de moldar a linguagem em figuras, que criam camadas de sentido em único texto.
Entretanto, é preciso ouvir os primeiros acordes da guitarra para compreender a tese do compositor. A introdução de “A carta” dispõe ao ouvinte o groove do funk (o de James Brown) e o suingue jazzístico, marca registrada de Djavan, reforçado em reincidentes improvisações vocais, o chamado scat singing. É nesse ambiente melódico que o cantor imprime sua sugestão. Na vida, não se deve “levar tudo tão a sério”, ao passo que as escolhas devem ser feitas com sabedoria (“Se souber confiar no seu critério/Nada a temer”).
Djavan não propõe a filosofia dos livros que oferecem felicidade em dez passos. O compositor, digamos, adapta o amor fati nietzschiano[1] e acotovela a Náusea de Jean-Paul Sartre. Em outras palavras, a vida não tem o peso dado pelos existencialistas, mas continua a ser moldada por nós. “Não vá levar tudo tão na boa/Brigue para obter o melhor”. Fiquemos, pois, em derradeiro esforço filosófico, com a Justa Medida, de Aristóteles: o equilíbrio faz o homem virtuoso.
A canção mantém a batida inicial até os instrumentos de sopro introduzirem uma quebra na prosódia de Djavan, que anuncia uma carta de Gabriel, o Pensador. Se o funk continua firme, agora o cantor utiliza-se de um vocal rappeado para ler a crítica social escrita pelo parceiro. “Eles me disseram tanta asneira/Eles me disseram que a coleira e um prato de ração/Era tudo que um cão sempre quis”, diz a letra.
Mas é preciso identificar quem são Eles, isto é, a quem o rapper faz referência. A resposta está nos versos seguintes. “Me deram uma gaiola como casa, amarraram minhas asas/E disseram para eu ser feliz/Mas como eu posso ser feliz num poleiro?/Como eu posso ser feliz sem pular?” Gabriel, o Pensador indigna-se com as autoridades e com a histórica desigualdade social do Brasil. No cenário atual, a carta torna-se um convite para que Eles forneçam, no mínimo, água encanada aos moradores de comunidades do Rio.
O tom combativo permanece até os últimos versos, embora diluído na filosofia sugerida por Djavan. “Ah, segurei o meu pranto para transformar em canto/E para meu espanto minha voz desfez os nós/Que me apertavam tanto”. Agora, além de encarar as dificuldades com racionalidade, é preciso manter certa joie de vivre para que a realidade não seja insuportável. “A carta”, de Djavan e Gabriel, o Pensador, dissemina um vírus de esperança em horizontes turvos.
Djavan interpreta “A carta” em turnê no ano de 2000.
Letra da canção “A carta”, de Djavan e Gabriel, o Pensador.
Não vá levar tudo tão a sério
Sentindo que dá, deixa correr
Se souber confiar no seu critério
Nada a temer
Não vá levar tudo tão na boa
Brigue para obter o melhor
Se errar por amor Deus abençoa
Seja você
No que sua crença vacilou
A flor da dúvida se abriu
Vou ler a carta que o Biel mandou
Pra você, lá do Brasil
“Eles me disseram tanta asneira, disseram só besteira
Feito todo mundo diz
Eles me disseram que a coleira e um prato de ração
Era tudo o que um cão sempre quis
Eles me trouxeram a ratoeira com um queijo de primeira
Que me, que me pegou pelo nariz
Me deram uma gaiola como casa, amarraram minhas asas
E disseram para eu ser feliz
Mas como eu posso ser feliz num poleiro?
Como eu posso ser feliz sem pular?
Mas como eu posso ser feliz num viveiro,
Se ninguém pode ser feliz sem voar?
Ah, segurei o meu pranto para transformar em canto
E para meu espanto minha voz desfez os nós
Que me apertavam tanto
E já sem a corda no pescoço, sem as grades na janela
E sem o peso das algemas na mão
Eu encontrei a chave dessa cela
Devorei o meu problema e engoli a solução
Ah, se todo o mundo pudesse saber
Como é fácil viver fora dessa prisão
E descobrisse que a tristeza tem fim
E a felicidade pode ser simples como um aperto de mão
É esse o vírus que eu sugiro que você contraia
Na procura pela cura da loucura
Quem tiver cabeça dura vai morrer na praia”
É esse o vírus que eu sugiro que você contraia
Na procura pela cura da loucura
Quem tiver cabeça dura vai morrer na praia”
[1] Conceito do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), que significa “amor ao destino”. Trata-se da capacidade de aceitar o destino humano, mesmo que realidades negativas apareçam.