Enquanto ajudava uma amiga a esvaziar o porão de sua casa, o diplomata francês Jean-Yves Berthault encontrou dentro de uma caixa, embaixo de vidros de conserva e pilhas de jornal, uma bolsa de couro identificada apenas com iniciais. Como quem está prestes a descobrir um tesouro, se viu diante de cartas guardadas havia quase um século, em ótimo estado de conservação, enviadas por uma mulher chamada Simone a seu amante, Charles.

Ela, solteira, culta e de boa família. E ele, mais jovem e casado, viveram, na Paris da década de 1920, uma relação febril cujo motor principal era o sexo. Da correspondência entre os dois só restaram as cartas remetidas pela amante, uma vez que, segundo o código de conduta da época, com o fim do relacionamento, o homem em adultério deveria devolver as cartas que lhe haviam sido endereçadas, e a amante, por sua vez, destruir as que havia recebido, a fim de protegê-lo. O futuro mostraria que essa ética não protege verdadeiramente os amantes.

Instigado pela obscenidade contida nas cartas, o diplomata pediu permissão à amiga para levar a bolsa consigo. Pôde, então, depois de um ano em companhia dos dois, reconstruir a cronologia do romance epistolar – tarefa difícil, pois apenas algumas das cartas estavam datadas (com o ano de 1929). Seu empenho resultou no livro A paixão de Mademoiselle S., publicado pela renomada editora francesa Gallimard, e, recentemente, no Brasil, pela Companhia das Letras.

Capa de A paixão de Mademoiselle S.

Desde a primeira carta, já estamos na cama com os amantes. E assim passamos a quase totalidade delas. A não ser por um passageiro flashback, quando Simone rememora o dia em que se entreolharam pela primeira vez em alguma sala de escritório, não ficamos sabendo como se conheceram e nada sobre as vidas de um e de outro para além do raio circunscrito da garçonnière onde se encontravam. O espectro da mulher de Charles faz as vezes de antagonista nos poucos momentos de ciúme assumidos por Simone.

A tônica da correspondência é, portanto, a descrição explícita das relações sexuais do casal. O vocabulário é reto. Partes do corpo se combinam com objetos num todo indistinto próprio da sensação de fusão e despersonalização experimentada no ato sexual. A pornografia é alternada com termos amorosos como “meu amante querido”, “lábios amados”, “lindos olhos castanhos”, “quanta saudade senti” etc.

A princípio, Simone é subserviente aos desejos do amante – “jovem deus”, “deus bem-amado”, “meu pequeno deus do amor” é como repetidamente o evoca. Oferece-se à “crueldade” de Charles: “[…] diga, meu amor querido, que ontem fui uma escrava dócil e resignada, diga que a sua paixão cruel foi saciada e que os seus sentidos em delírio se acalmaram na vitória”.

Ambos passam juntos por um processo de aprendizagem radical em matéria de luxúria. Permitem-se cada vez mais e ele revela sentir progressivo prazer com a sodomia. Antes de tudo, Simone quer satisfazê-lo. A certa altura, eis que algo inesperado acontece: ela assume o papel do homem e ele, da mulher. Agora, fazendo uso de uma cinta peniana – e outros objetos que passam a ser essenciais nessa relação de sinais trocados –, a relação muda: Charles se torna Charlotte (ou apenas Lotte), “jovem mulher”, “boneca querida”, “amante carinhosa e lasciva”. Simone é tomada pelo jogo e provoca ostensivamente os desejos íntimos de seu par.

A partir desse ponto, como se tivessem alcançado o cume da devassidão, as aventuras entre quatro paredes passam a não ser mais suficientes para manter o casal unido. Do ponto de vista afetivo, a relação mostra-se precária. Charles não dá nenhum sinal de que largará a mulher. Simone, aparentemente resignada, tem crises de ciúme e invoca a libertinagem deles como garantia de exclusividade – “Mas esse vício não é a única razão da nossa união duradoura?” – pergunta, confusa. Reconhecendo-se na posição da outra, quer, no entanto, se sentir única, embora sabendo que não pode oferecer nada mais do que a realização das fantasias sexuais de Charles.

A imaginação pornográfica dela não se esgota. Simone continua querendo excitar Charles, mas a obscenidade como recurso de sedução vai se tornando cada vez mais maçante. As palavras vão perdendo vitalidade por serem exaustivamente repetidas e as promessas se sucedem desesperadas. Ainda que inconformada com a perda do monopólio da satisfação sexual sobre o amante, ela o incita a um ménage com mais um homem, pois este seria supostamente o maior desejo de Charles. Depois de alguma negociação, o encontro a três enfim acontece, sem, no entanto, evitar o declínio do relacionamento e o inexplicável afastamento de Charles.

 Em A paixão de Mademoiselle S., a personagem principal faz valer, a sua revelia e em alto nível de tensão, a teoria de Sócrates em O banquete: o sexo, insuficiente para assegurar duração, estaria no degrau mais baixo da relação amorosa. Este é todo o drama: buscar no sexo o elemento de união duradoura, quando, ao contrário, sua natureza é ser essencialmente fugaz. Simone vai longe, mas aquilo que alcança sempre lhe escapa, e assim ela tem que criar algo novo, que, por sua vez, também se consumirá rapidamente.