Nos últimos anos, os estudos literários brasileiros têm deparado com um campo de pesquisa de grande abrangência – a epistolografia.  A bem da verdade, a crítica literária brasileira sempre teve dificuldades com a chamada “paraliteratura”, isto é, toda sorte de escritos não ficcionais,  de cunho autobiográfico tais como cartas, diários, memórias, agendas e outros textos desta natureza.  Por isso, a epistolografia – numa perspectiva sistematizada – ainda é um campo de pesquisa em desenvolvimento, enriquecido agora pela correspondência, ainda inédita, entre o crítico literário e pensador católico Alceu Amoroso Lima e o poeta Murilo Mendes.

Vale dizer que o período cronológico desta correspondência se dá entre 27/12/1930 (com a primeira carta – de Murilo Mendes – enviada a Alceu) até 19/02/1974, com a última carta, também enviada por Murilo, que, aliás, foi mais assíduo na troca epistolar. Infelizmente, as cartas de Alceu a Murilo se perderam em sua maioria, permanecendo apenas duas delas, cujo conteúdo acessamos através de cópias, em carbono, mantidas por Alceu no seu arquivo.

Os assuntos desta correspondência são os mais variados, destacando-se o debate sobre o universo literário da época – brasileiro e europeu – comum nas correspondências entre escritores. Foi Murilo quem deu o primeiro passo desta “carteação”, em 1930, quando ainda vivia em Juiz de Fora, no ano de lançamento do seu primeiro livro – Poemas. Por esta época, Alceu já era crítico consagrado, com imensa experiência analítica de autores e obras. Escreveu o poeta:

Prezado Alceu,

Li o seu artigo que me confortou sobremodo – não tanto pelos elogios que contém – mas pela justeza de certas observações.  Você disse o essencial sobre meu livro.  É claro que, se você dispusesse de mais espaço, poderia entrar em maiores detalhes – mas dentro daquelas reduzidas 2 colunas você tinha mesmo que espremer seu pensamento.  Vejo que você me toma a sério, o que para mim é muito importante: não vê no sujeito dos Poemas um jogral, nem um mistificador – mas sim um indivíduo dissociado, mas que se esforça por atingir uma ordem.

A motivação de Murilo é a crônica “Mais vozes de perto”, publicada por Alceu em O Jornal sobre o Poemas.

As 41 cartas trocadas entre ambos testemunham, entre outras questões, o período da conversão religiosa de Murilo, cujo momento culminante se deu com a morte do pintor Ismael Nery, seu grande amigo, em 1934. Após esta experiência pessoal, o poeta passou a frequentar as reuniões e compromissos do Centro Dom Vital de Juiz de Fora, tornou-se assinante da revista A Ordem e, quando estava no Rio de Janeiro, não perdia as conferências que o Pe. Leonel Franca realizava no Colégio Santo Inácio, em Botafogo. Escrevendo a Alceu Amoroso Lima, em 18/2/1936, comentando como estava o clima religioso do Rio de Janeiro, Murilo registrou:

Ao chegar aqui encontrei a cidade saindo da semana de ação católica – e completamente goffineizada[1] pelo cônego Henrique Magalhães. Depois disto recolhi-me em casa com um braço enguiçado, só saí ontem – de maneira que não pude tomar altura do pessoal. Em todo o caso, nos primeiros dias, encontrei grande resistência nos meus propósitos de desgoffineização. É verdade que Deus escreve direito por linhas tortas – de maneira que não duvido nada que a semana produza bons resultados.

Percebe-se, por meio das cartas, a total mudança de rumos na vida pessoal de Murilo, que de dandy rebelde passou a católico praticante. Saltando um pouco no tempo, chegando à década de 1950, vemos Murilo Mendes envolvido em outras atividades culturais fora do Brasil. Respondendo a convite do Departamento de Difusão Cultural do Itamaraty, o poeta proferiu uma série de palestras em universidades e instituições culturais europeias. Nesta carta enviada a Alceu, em 1/3/1954, percebemos a importante atividade que Murilo exercia naquele momento:

Querido Alceu,

Você me pede minhas notícias, inclusive, coisas sobre a minha missão aqui. No princípio, como o Embaixador lhe contou, as coisas foram difíceis. […] Não foi assinado ainda o acordo cultural belga-brasileiro… Pelo que me propuseram fazer um ciclo de 4 conferências (como teste, evidentemente), na série oficial das conferências da Universidade. Aceitamos. Depois de feitas as 2 primeiras, começam a surgir os convites para as Universidades de Liége e Louvain, Escola de Altos Estudos de Gand, Musées Royaux d’Art et d’Histoire, e outros mais. Já fiz 2 conferências em Louvain. […] Quarta-feira falei em Louvain sobre o nosso barroco e sobre a arquitetura e pintura modernas, estabelecendo pontos de ligação.

Murilo sabia fazer bom proveito destas viagens, que funcionaram como franca oportunidade de conhecimento, de pesquisa, contato com fontes e outros escritores locais. Favoreciam o desejo de  intercâmbio do artista brasileiro, ávido pela velha Europa, fonte dos inúmeros cânones literários que moldaram as literaturas das antigas colônias, inclusive o Brasil.

Em 1957, Murilo Mendes se mudou definitivamente para a Itália, passando a residir na capital italiana como professor de Literatura Brasileira nas universidades de Roma e Pisa. Na primeira, criaria a cátedra de Estudos Brasileiros e estabeleceria vínculo tão forte com a instituição que dela se tornou membro efetivo, aí permanecendo até a morte, em 1975.

Em Roma, Murilo transformou o seu apartamento na “embaixada cultural do Brasil na Itália”, expressão criada por Alceu Amoroso Lima para definir a práxis cultural do poeta em uma das duas cartas que lhe enviou. Assim escreveu porque sabia que a residência do autor de Poemas era ponto de encontro de artistas, políticos e intelectuais não apenas italianos, mas também de outros países, especialmente Espanha e Portugal, que viam no anfitrião um agitador cultural empenhado em apresentar o Brasil à Europa e ao mundo. Neste sentido, em 23/11/1960, Alceu destaca, em carta dirigida ao casal Murilo Mendes e Maria da Saudade Cotesão:

Queridos amigos

Sempre temos ecos da esplêndida atuação do Murilo, nos seus cursos e do casal nos meios artísticos e intelectuais de Roma. A ponto de ter ouvido há dias, creio que de Sílvio da Cunha (de volta de Santiago do Chile e com projetos de se fixar em S. Paulo), que Murilo não deseja mais voltar cá para esta cidade Estado, que ganhou muito com Brasília. […] O Rio ganhou, por ter ficado… provinciano.

Alceu toca num assunto delicado: o retorno de Murilo Mendes, após longos anos vivendo em Roma (1957-1975). Além da ótima adaptação que teve na Itália, o poeta tinha medo de não ter, no Brasil, a mesma segurança profissional que conquistou na Europa. Sabemos também que Murilo gostava e desfrutava do ambiente artístico europeu, algo que o marcou profundamente, propiciando-lhe uma vida cosmopolita. Na mesma carta, segue Alceu:

A carta admirável do Murilo me animou a fazer um pedido: não será que você, Murilo, possa mandar-nos de vez em quando, para A Ordem uma “correspondência de Roma”? Seria como uma carta em que você tratasse dos assuntos que quisesse, sagrados ou profanos, políticos ou de arte, do seu próprio curso ou de um filme como “La Dolce Vita”, por exemplo, que encantou e despertou tantas opiniões disparatadas por aqui. Seria para nós uma bênção.

Essa “correspondência de Roma” não se concretizou. Todavia, o mais interessante é o pedido de Alceu a Murilo que, mesmo à distância, alimentava aqueles que aqui permaneceram. Ressalto, agora, um aspecto que considero dos mais fundamentais numa correspondência literária: a descoberta de inéditos.

Sabe-se que os missivistas usavam a carta para trocar mutuamente a sua produção literária. Neste sentido, Murilo Mendes confiou em Alceu, enviando-lhe textos da própria lavra. Muitos destes não foram publicados, permaneceram guardados no arquivo do crítico. É interessante a descoberta de poemas como este:

A morte da puta

A puta morreu.
Dois soldados e quatro velas
ficaram de plantão a noite inteira.
Algumas mulheres torraram o serviço,
foram espiar
– pra quem ficarão os vestidos dela?
Um deputado mandou um buquê de rosas.
Não veio oração fúnebre no jornal.
Os filhos da puta não souberam.

Ou então este:

Box

Um anjo lutava com um demônio.
O Tristão de Ataíde interessadíssimo
assistia
torcendo pro anjo ganhar.

Houve empate.

Quem ficou nocaute
foi o Tristão.

Na primeira peça, percebe-se ainda um poeta em formação, gozando da liberdade própria dos primeiros anos modernistas neste poema-piada, tão ao gosto de um Oswald de Andrade. Em “Box”, vemos uma total experimentação de criação poética, algo ainda incipiente, marcado até mesmo por uma certa falta de profundidade do fazer literário e do manuseio com a poesia. “Box” é um excelente exemplo de início da carreira literária de um poeta, e Alceu sabia disso.

Como se viu aqui, Murilo se aproximou de Alceu no início da década de 1930 do século passado, ou seja, na conclusão da nossa primeira década modernista. O objetivo foi o mesmo de tantos outros escritores: comunicar-se com o mais importante crítico literário da época. Alceu sempre viu em Murilo o poeta exemplar, aquele que, ao se converter ao catolicismo, dotaria sua poesia de sabor especial e de altíssimo nível artístico. Além disso, Murilo também exerceu uma função fundamental, na concepção de Alceu: o de embaixador da nossa cultura no estrangeiro.

A carta foi o elemento que uniu distâncias e promoveu intercâmbios, que propiciou o encurtamento de caminhos entre os missivistas. Alceu e Murilo exploraram ao máximo as dinâmicas do gênero epistolar, isto é, viram nas missivas oportunidades não apenas de trocas de informações mútuas, mas também intercâmbios os mais profundos e duradouros. A carta como testemunho. A carta como narrativa de vida e de amizade.

[1] Referência ao monge alemão Leonard Goffiné (1648-1719), cujo livro Manual do Cristão (espécie de devocionário), publicado no Brasil em 1912, foi largamente difundido pelos beneditinos do Rio de Janeiro.