Gilberto Freyre e Manuel Bandeira não se conheciam pessoalmente quando, em 1925, o primeiro encomendou ao conterrâneo um poema para o Livro do Nordeste. A obra, que Freyre organizava e para a qual pinçava colaborações de pernambucanos os mais talentosos, marcava o centenário do Diário de Pernambuco.

Ainda que achasse a experiência estranha – nunca tinha feito nada sob encomenda –, Bandeira topou a empreitada. Não resistiu ao tema, e produziu o mais que antológico “Evocação do Recife”. A partir daí teve início, pra valer, a amizade do poeta de Pasárgada com o sociólogo autor de Casa grande & senzala.

Traduzindo o sobrenome do interlocutor para o inglês, Freyre o rebatizou de Flag. Se queria o nome completo, não hesitava em escrever Baby Flag: sabia que Bandeira era chamado de Nenê, na família, até mesmo quando já rapazinho, e isso o autorizava a reinventar nome e sobrenome.

Está claro que o Recife os unia. Permitiam-se falar a língua que “vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo/ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”, como nos versos de “Evocação do Recife”. Comunicavam-se na mesma língua: a língua da emoção, da ternura, da raiva também. A língua local, da sua cidade. Podiam empregar termos do Recife, certos de que seriam entendidos e que, mais ainda, poderiam saboreá-los.

Para eles, só esses vocábulos é que traduziam plenamente o que vem lá de dentro da alma, a que é acrescido o prazer de pronunciá-los. Ou a delícia de escrevê-los. Quem, aqui no Rio, compreenderia Bandeira dizer que Zé Lins do Rego se sentia “arripunado”, que, “na língua certa do povo”, quer dizer “rejeitado”, “enjoado”? Palavras assim, carregadas de significado regional, aproximavam os dois pernambucanos e lhes encurtavam a distância.

Gilberto Freyre e Manuel Bandeira lidaram de maneira diferente com o seu Recife. Em carta de 28 de dezembro de 1934, já autor de Casa grande & senzala, que é de 1933, Freyre conta que recebeu convite para dar um curso na Universidade de Berkeley: “Mas querem contrato de um ano, e meu sentimentalismo está lutando contra. Não quero saber de um ano inteiro fora daqui. Cada vez me sinto mais preso a isto aqui.”

Ligado fisicamente à terra onde nasceu, era diferente de Bandeira, que muito cedo abandonou o Recife, sem – é preciso que se diga – jamais ter deixado de amá-lo. Integrou-se completamente ao Rio de Janeiro e, no amor pelas duas cidades, conseguiu um equilíbrio invejável: no poema “Recife”, lê-se: “Quero, na hora da morte, estar lúcido/ Para te mandar a ti o meu último pensamento,/ Recife”. E no poema “Rio de Janeiro”, publicado logo em seguida a esse, nas louvações de Estrela da tarde: “Ó Rio de meus primeiros/ sonhos! (A última hora/ De minha vida oxalá/ Venha sob teus céus serenos,/ Porque assim sentirei menos/ O meu despejo de cá.)”

Maior pacificação seria impossível. O poeta morreu no Rio, em 13 de outubro de 1968, e deve ter conseguido o que desejou nos versos, abraçado ao mesmo crucifixo de marfim com que vira morrer o pai.

Gilberto Freyre não conseguiu tal harmonia. Dilacerava-se só em pensar em sair do Recife. Em carta de 26 de janeiro de 1935, escrevia ao amigo: “Eu queria viajar, mas uma viagem curta, que acabasse logo, que apenas me desse as impressões, os estímulos e contatos que eu preciso, senão dou para provinciano dos ruins, intelectual provinciano, que é uma coisa horrível; e adeus”.

Toca-se aqui no título de Cartas provincianas: correspondência entre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, a bem cuidada edição organizada por Silvana Moreli. Ora, na década de 1920, quando Bandeira morava na então rua do Curvelo, no bairro carioca de Santa Teresa, colaborava para o jornal pernambucano A Província, dirigido por Freyre. Declarava que ele e Joanita Blank, autora das ilustrações, eram os star contributers do periódico. Vivia na pacata Santa Teresa do início do século XX, impregnado do “humilde cotidiano” da ruazinha modesta, onde convivia com meninos da vizinhança e com a empregada que ele imortalizaria no poema “Irene no céu”. Sabia do que estava falando quando escreveu na crônica “Sou provinciano”, para o Estado de Minas.

Há, é certo, um provincianismo detestável. Justamente o que namora a Corte. O jornaleco de município que adota a feição material dos vespertinos vibrantes e nervosos do Rio – eis um exemplo de provincianismo bocó. É provinciano, mas provinciano do bom, aquele que está nos hábitos do seu meio, que sente as realidades, as necessidades do seu meio. Esse sente as excelências da província. Não tem vergonha da província – tem é orgulho.

Foi esse bom provincianismo que o impulsionou a conhecer poetas e prosadores de outras literaturas além da francesa, de que era tão devotado leitor.

Se o poeta Ribeiro Couto, “grande farejador de novidades”, lhe apresentou autores estrangeiros, principalmente italianos, foi Gilberto Freyre – atestam as Cartas provincianas – quem lhe abriu os olhos para os “poetas novos” em língua inglesa. Por meio de uma antologia que o amigo lhe emprestou, Bandeira entrou em contato com os esplêndidos sonetos de Elizabeth Browning. Seu gosto apurado não falhou: caiu de amores pela poeta dos Sonnets from the Portuguese. O encantamento foi tamanho que ele não só a incluiu na edição dos seus Poemas traduzidos, como escreveu mais de uma crônica sobre a fabulosa história de vida dessa mulher.

A retribuição pelo “presente” de Freyre não demoraria a vir: “Ficou um bichão de bom aspecto, que já está ficando conhecido como o Ulysses pernambucano”, escreveu Bandeira depois de ler o hoje clássico Casa grande & senzala, nos primeiros dias de 1934. Como grande conhecedor da língua portuguesa, seria o primeiro leitor do sociólogo pernambucano. Fazia correções, dava palpites.

Literatura, sociologia, cotidiano familiar, graça e provincianismo do melhor recheiam essa correspondência. A edição de Cartas provincianas conta com substancioso estudo de Silvana Moreli, além de notas de rodapé que jogam luzes sobre as cartas. Trabalho de fôlego, que certamente enriquece a epistolografia brasileira. Quanto a mim, não posso deixar de pensar o que escreveria hoje o poeta, ele que, em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros, desabafava em carta de 8 de setembro: “Que Brasil este! Como é difícil amá-lo! Entreguei os pontos: seja o que Deus quiser.”

Entre outros frutos, a amizade de Gilberto Freyre com Manuel Bandeira deixou um inquestionável legado poético: “Evocação do Recife”.        Quem já pôde assistir a uma aula de Eucanaã Ferraz sobre o poema não duvida do bem que a encomenda trouxe à literatura brasileira. Quem não teve esse privilégio pode agora, na rica seção de anexos que Silvana Moreli inclui na edição das Cartas provincianas, ler o magnífico ensaio de Freyre intitulado “Em defesa da saudade”, tema ligado ao poema. E “Manuel Bandeira, recifense”, de que se destaca o seguinte trecho:

Raros poemas com a mesma riqueza de substância. Cada palavra é um corte fundo no passado do poeta, no passado da cidade, no passado de todo homem, fazendo vir desses três passados distintos, mas um só verdadeiro, um mundo de primeiras e grandes experiências da vida. Não há uma palavra que seja um gasto de palavra. Não há um traço que seja de pitoresco artificial ou de cenografia. O poema é compacto: tem alguma coisa de um bolo tradicional do Norte chamado “Palácio encantado”, bolo muito rico, bolo de casa-grande de engenho, com sete gostos por dentro, sete gostos profundos em cada fatia que se corte dele.