Hoje, 5 de fevereiro, Henrique de Souza Filho faria 75 anos. Não consigo imaginá-lo tão provecto. Mal entrara nos quarenta quando nos vimos pela última vez: o mesmo moleque de sempre, então indignado com o governo Sarney e um recorrente inchaço no joelho causado pela hemofilia, doença que o expunha a frequentes hemorragias e consequentes transfusões de sangue. Numa transfusão, Henfil contraiu o vírus HIV, contra o qual lutaria até o início de janeiro de 1988. Já não atuávamos no Pasquim, onde nos conhecemos e por uma década convivemos, entre farpas e afagos, mais afagos do que farpas, pois era desse jeito, entre farpas e afagos que ele se dava com todo mundo.

Do Henfil dos Fradinhos, da Graúna, do Cabôco Mamadô, todos se lembram, mas o das cartas para Dona Maria da Conceição Figueiredo (1906-1995), sua mãe, bem menos gente se recorda, embora elas tenham sido publicadas em livro, já lá se vão 26 anos, e inspirado o curta Cartas da mãe, dirigido por Fernando Kinas e Marina Willer.

A rigor mais bilhetes do que cartas, saíam semanalmente na revista Isto É, ainda editada por Mino Carta, entre 1977 e 1980, e ocasionalmente também nas tiras dos Fradinhos, no Pasquim. Henfil as assinava como Henriquinho, que foi como a mãe sempre o chamou, e as enfeitava com desenhos (os seus “calunguinhas”), e em meio a confissões até sobre taras e surtos de priapismo, relatava as novidades de casa, as primeiras gracinhas do filho, e o que acontecia no Brasil no período. Ou seja, do início da abertura política à campanha pela Anistia.

“Será pretensão minha dizer que, por estas cartas, é possível acompanhar a história do Brasil?”, perguntou-se Henfil na orelha do livro com suas matreiras missivas. Ele podia ser e de fato era pretensioso, um Montesquieu mineiro, com um general (Figueiredo) no lugar do rei Luís XIV.  Os medos provocados pela ditadura militar, os depoimentos no exílio do irmão Betinho (o sociólogo Herbert José de Souza), as greves do ABC, a volta dos exilados — está tudo lá, nas “Cartas Persas” do Henriquinho.

Esconder-se debaixo da saia da mãe foi a maneira mais engenhosa que ele encontrou para driblar a repressão. “Teriam de passar por cima dela pra me pegar”, bravateou, referindo-se à ilustre destinatária, a quem de cara procurou tranquilizar com promessas de fidelidade à proverbial prudência mineira.

“Pode deixar. Eu sei falar com modos. A senhora sabe que eu sempre fui muito jeitoso para falar as coisas nas piores situações. Não vou criar problemas pra mim, não. Pode ficar sossegada. O que eu tenho a dizer para os militares é um negócio que interessa muito a eles e demais a nós. Alguém tem que dizer.”

E se porventura falou sem modos, a repressão não notou. Henriquinho falou da guerra nas Malvinas, da infausta Copa do Mundo de 1982, dos conflitos entre israelenses e palestinos, do atentado a bomba no Rio Centro, da cisão entre os militares da linha-dura e os favoráveis à abertura, abriu polêmica com os baianos que considerava alheios à questão social (os desengajados do “grupo Odara”, alusão à música de Caetano Veloso).

Com seu método peculiar de combater o poder e as autoridades, desconcertando-os com falsos afagos, fez cobranças diretas ao ministro da Previdência Social do governo Figueiredo e ao próprio presidente, que chamava de “primo”.  Ao vice-presidente Aureliano Chaves pediu adesão imediata às eleições diretas. Coincidência ou não, dois dias depois de publicada a carta, o vice passou a falar diferente e praticamente aderiu à ideia.

Foi Henfil quem pôs na boca do senador alagoano Teotônio Vilela (1917-1983) a expressão “Diretas Já!”, que depois se transformaria em slogan do movimento pela volta da democracia ao país e à elaboração da Constituição de 88, que o filho de Dona Maria, morto em 4 de janeiro daquele ano, não pôde ver promulgada.

A mãe de Henriquinho era uma figuraça. Nascida em Bocaiúva e prima de uma das mais felpudas raposas da política nacional, José Maria Alkmin, Henfil a definiu como “uma mineira meio atípica”, por ser do norte do Estado, uma matriarca discreta, “tipo mãe dos Kennedy”.  Não queria ver os filhos sobreviverem fisicamente apenas, mas também como cidadãos solidamente educados e engajados no combate às injustiça sociais, de uma perspectiva cristã, humanitária, o que explica a iniciação política de sua prole na AP (Ação Popular), movimento cristão de esquerda, fundado em 1962 e bastante reprimido durante o regime militar.

Muito religiosa, dona Maria impôs em casa o medo ao diabo, que Henfil reconhecia como de extrema importância para a formação de seu humor sádico e blasfemo. Viúva de um juiz de paz, dono de cinema e padaria que chegou a prefeito nomeado de Bocaiúva, sustentou a casa e a educação da filharada com uma modesta pensão deixada pelo marido. Perdeu três dos quatro filhos homens para a hemofilia. Betinho, principal liderança estudantil da AP quando os militares tomaram o poder em 1964, encarou uma década e meia de exílio no exterior, mas voltou a tempo de viver 15 anos ao lado da mãe, que um câncer no útero matou antes de seu primogênito também sucumbir à maldita hemofilia.