No dia em que os aliados desembarcaram na costa da Normandia, na operação que entraria para a história da segunda guerra mundial como o Dia D, o escritor francês de origem argelina Albert Camus e a atriz espanhola Maria Casarès se tornavam amantes, em Paris. Era 6 de junho de 1944.

Camus, casado com Francine Faure, que permanecera na cidade argelina de Omã, ocupada pelos alemães, enquanto o marido se juntara à Resistência, na França, conhecera Casarès na casa de amigos em comum no dia 19 de março daquele ano, ocasião em que a convidou para fazer o papel de Martha na peça Le Malentendu, de autoria dele. Àquela altura, já era conhecido pela peça de teatro Calígula, de 1939, pelo ensaio O mito de Sísifo, de 1941, e O Estrangeiro, de 1942. Durante os ensaios de Le Malentendu, se apaixonaram: ela, com 21 anos de idade, ele, com trinta.

Quem lê a correspondência amorosa trocada entre os dois nas 1.200 páginas de  Correspondance 1944-1959, editada pela Gallimard, perceberá a lacuna logo no início da relação, entre outubro de 1944 e 1948. Nesse período, Camus decidira deixar Maria Casarès para tentar manter o casamento com Francine. Convenceu-se de que devia fazer sua mulher  feliz e escreve a Maria, com franqueza: ” É de nós e de mim que eu gostaria de falar – vou tentar fazer Francine feliz”.[1]

Mas quis o imponderável que dali a quatro anos, em um outro 6 de junho, dessa vez de 1948, os antigos amantes se esbarrassem no Boulevard Saint Germain. A partir daí, só se separariam com a morte dele, ainda que Camus mantivesse o casamento durante o romance.

A distância física entre os dois amantes, portanto, foi marca da relação, e por isso mesmo fez com que eles se lançassem às cartas como forma de estarem perto um do outro, mesmo em endereços diferentes. Assim, em 12 de agosto daquele ano do reencontro, Camus, do interior da França, escrevia, ao receber uma carta de Maria: “Devorei as páginas. Às vezes, meu coração parava. Outras vezes, corria com o seu, batendo com o mesmo sangue, o mesmo calor, a mesma alegria profunda”.[2] Era uma resposta às palavras de 6 de agosto, quando ela lhe agradecia a felicidade  de que era tomada pelo simples fato de ele existir, perto ou longe dela.

Em 1949, Camus empreendeu uma viagem de dois meses à América do Sul. No dia 30 de junho daquele ano, ele embarcou, no porto de Marseille, para a turnê que incluía o Rio de Janeiro e previa uma série de conferências em outras capitais do país. As  angústias que precedem a empreitada estão presentes nas cartas e mostram que o escritor apreendia a viagem. O Atlântico à sua frente o inquietava; a distância da Europa o afligia, mas a falta da amada o atormentava mais que tudo. Assim, dois dias antes da partida, ele escreve a Casarès informando que o navio francês Campana, no qual embarcará, fará escala em Dakar no dia 6 de julho, e é lá que ele espera receber uma carta dela “tão longa que possa preencher os quinze dias de silêncio que se seguirão”.

Para aumentar-lhe o sofrimento, não tivera uma despedida pacífica com Casarès – indicam as cartas. Camus a deixara em Paris e fora de carro até L’Isle-sur-la-Sorgue, vila sobre o Sorgue, esse “estranho e puro rio”, na região da Provence, para se despedir da mulher e dos filhos. Só depois seguiria para o porto de Marseille. Pela carta de Maria, de 30 de junho, a última escrita antes que o amante deixasse a França, o leitor passa a entender a origem de parte do tormento do escritor: Casarès lhe pede para esquecer as frases desagradáveis que ela dissera na despedida. Indica, assim, que houvera tensão no adeus e procura consolá-lo com uma bela metáfora sobre a água: pede a Camus que olhe para o mar, onde ela, Maria, foi feita, e ouça seus gritos de amor mais alto do que nunca.[3] E, ainda sobre a água, Maria Casarès, nascida em La Coruna, na região costeira da Galícia, que tem o mar como elemento, vai adiante: “Imagine que quando estou segura de seu amor, não invejo a água por ser tão bela; ao contrário, eu a amo de modo fraternal”.[4]

As cartas de Casarès, dirigidas a “Mon prince charmant”, “Cher prince”, “Mon amour chéri”, não ficam atrás das de Camus em riqueza de expressão, de imagens e força de representação de sentimento, assim como no talento de se transportar para o lado do amante e de fazer-se presente por meio de palavras. De personalidade positiva, suas queixas são da dor de amar; de, pela primeira vez na vida, sentir a necessidade insuportável – afirma – da presença de alguém, a cada minuto, como sentia da presença dele. De resto, ela o encoraja a enfrentar a viagem, ao mesmo tempo que reflete sobre as feridas na alma causadas pela discussão antes da viagem e que a torturam a ponto de se sentir incapaz de respirar. Quer saber todos os detalhes da turnê, tem dificuldade de imaginá-lo nesses “países tenebrosos” da América Latina –, revela em carta de 11 de julho, que termina assim:  “Te espero. Te amo. Beijo todo o teu rosto, todo o teu corpo em chama, te abraço, passo os braços no teu pescoço, e aí fico”.[5]

No mesmo dia 14 de julho em que ela, de Paris, descreve as comemorações do dia nacional da França, o escritor, deixando Vitória, no Espírito Santo, em direção ao Rio de Janeiro, dá notícias da carta que recebera ainda em Dakar e que o ajudou a sobreviver a travessia do oceano. Está sereno, as águas capixabas o encantaram, enquanto ela, tomada pela melancolia e pelas saudades, encontra força no amor que sente por Camus e prefere a vida:  “Você me fez bela: é preciso que saiba disso”.[6]

Nem mesmo o verão parisiense impediu que Maria Casarès acompanhasse, por carta, o deslumbramento de Camus ao se aproximar da baía de Guanabara no amanhecer da sexta-feira, 15 de julho de 1949. Depois do almoço com o escritor Aníbal Machado, o jantar foi com Augusto Frederico Schmidt, que ele descreve como “um poeta católico e diabético, homem de negócios, que num Chrysler enorme dirigido por um motorista engalanado repetia dolorosamente: “Somos um povo pobre, miseráveis. Não há luxo no Brasil”.[7]

Mas o arrojado aparato carioca só serviu para incomodar o autor de L’Étranger. Renegou textualmente o almoço no dia seguinte, sábado, certamente com Lúcia Miguel-Pereira, que ele descreve como uma “romancista, tradutora e crítica de arte”. Romancistas e jornalistas presentes às recepções só o fizeram concluir o horror que sentia por tudo aquilo, e jurava que era a última vez que caía nessa armadilha.[8]

Para completar, recusa o hotel para ele reservado. Em vez do “mais luxuoso”, “cheio de estrangeiros riquíssimos”, se instala na embaixada da França, que lhe ofereceu um quarto com banheiro e uma varanda que dá para a baía. Goza de “uma paz real”.[9] Vai com um ator negro (a edição informa em rodapé que se trata de Abdias do Nascimento (1914-2011) a uma roda de samba, mas fica decepcionado com o ritmo, que acha “fraco e sem graça”.[10] Mil vezes melhor dança Maria – é o que pensa ele. O terreiro de macumba causou-lhe mais uma decepção, deixou-o num misto de horror e sedução.

Essas frustrações precederam a primeira conferência no Rio, que seria no dia 20, quarta-feira, e sobre a qual nada informa nas cartas. A verdade é que a estadia no Rio foi penosa para Camus: “Nunca me senti assim. […] Pergunto-me se isso não é físico. O clima, pesado e úmido, me cansa. Perdi o bronzeado do barco e não me sinto forte. [,…] Os dias passam, mas tão lentamente quanto as noites de insônia, e eu não aguento mais. Escreve-me.[11]

Febre e gripe, os primeiros sintomas da tuberculose, se manifestaram na chegada ao Rio, em 27 de julho, de volta da Bahia, que integrava o roteiro. Em 3 de agosto viaja para São Paulo, dali para o Sul e depois para o Chile. Da capital paulista, escreve: “São Paulo é metade Nova York, metade Orã”, cidade da Argélia.

As saudades, sofridas não mais no período brasileiro, mas dentro da própria França, onde o casal precisava se afastar por causa de Francine,  ocupariam centenas de páginas dessa bela edição da Gallimard. Estendem-se até as vésperas da morte do escritor, em 4 de janeiro de 1960, em Villeblevin, vítima de um acidente de carro a caminho da capital francesa, pondo fim a uma história de amor de quinze anos.


[1]C’est de nous et de moi que je voudrais te parler – je vais essayer de rendre Francine heureuse

[2]Quelquefois mon coeur s’arrêtait.  D’autres fois il courrait avec le tien, battant avec le même sang, la même chaleur, la même joie profonde.

[3] “[…] si tu fermes tes oreilles aux vilaines phrases que j’ai prononcées, si, enfin, nu, tu te tournes vers cette eau où je me suis faite, tu m’entendras crier mon amour comme jamais je ne l’ai crié devant toi, près de toi.

[4]Pense que quand je me sens sûre de ton amour, je n’envie point la mer d’être si belle: je l’aime en soeur.

[5]Je t’attends. Je t’aime. J’embrasse tout ton visage, tout ton corps brûlé, me mets mes bras autour de ton cou e, là, je reste.”

[6]Tu m’as rendue si belle! Que veux-tu: if faut que tu le saches!

[7]Dîner avec um poète catholique et diabétique, et homme d’affaires, qui, dans une Chrisler énorme conduite par un chauffeur galonné répétait douloureusement: “Nous sommes de pauvres gens, misérables. Il n’y a pas de luxe au Brésil.

[8]J’ai horreur de cette vie et c’est la dernière fois qu’on m’y prendre.

[9]une paix royale.

[10]mou et assez disgracieux“..

[11]Je n’ai jamais été ainsi. […] Le climat, lourd et humide, me fatigue.  J’ai perdu mon doré du bateau et je ne me sens pas très vaillant. […] Les jours passent, mais si lentement, comme des nuits d’insomnie, et je ne peux plus me suppórter. Écris.”