Paris, 1990. O teatro Mogador, em Montmartre, está lotado para a gravação de Gauguin, novo álbum da cantora francesa Barbara. A noite é conduzida pelos grandes sucessos da artista, que, naquela altura, já tinha um lugar reservado no panteão da música francesa. O repertório agrada e acomoda o público, até que Barbara decide apresentar a canção que nomeia o disco. O silêncio, cortado pelas notas dissonantes do piano, introduz uma trilha sonora de filme de suspense. Estamos em um ambiente enigmático, reforçado pelos versos iniciais: “Chove na ilha d’Hiva-Oa /O vento, nas longas árvores verdes,/Evola grãos molhados de areia cor ocre/Chove em um céu de corais.”

A compositora esbanja lirismo ao delinear uma realidade distante para a maioria dos ouvintes. As imagens em alta definição impressionam, mas não significam uma novidade. Naquela noite, porém, um projeto ambicioso era executado. A fim de homenagear Paul Gauguin, Barbara traduziu, em uma sequência de sons e versos, as principais características da última fase do pintor pós-impressionista.

No fim do século XIX, Gauguin realizava suas últimas viagens à Polinésia Francesa. O pintor radicalizou o interesse pelo exotismo, documentando o cotidiano das ilhas em representações simbólicas da natureza. Do período, surgiram telas importantes, como Parau Api (1895), O cavalo branco (1898) e a gigantesca De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? (1897-98). Nela, o pintor mantém suas formas sintéticas, mas, no lugar das cores fortes, opta por tons mais frios.

A canção de Barbara não se limita a saudar o artista plástico. Sem citar nominalmente, “Gauguin” é uma carta a Jacques Brel, compositor incontornável da música francófona. Em 1969, Brel interrompeu a carreira. Quis dar a volta ao mundo com o lendário veleiro Askoy. Assim como Gauguin, apaixonou-se pelas Marquesas. Os artistas estão sepultados, lado a lado, em Hiva Oa, a segunda maior ilha do arquipélago.

Brel foi de extrema importância para Barbara, que dedicou o início da carreira a interpretar canções do fiel amigo. Na década de 1950, morando em Bruxelas, a então cantora de cabaré ganhou incentivo do compositor belga para escrever as próprias letras.

Quarenta anos depois, Barbara recuperava um dos períodos mais felizes da vida do amigo. As fronteiras entre poesia, carta, música e pintura são borradas na descrição de um dia em Hiva Oa. “Como uma chuva do norte/Que nuança as cores ocre vermelhas/E os azuis-violetas de Gauguin/Chove/As Marquesas são cinza/O zéfiro é um vento do norte”. A autora da canção gira ao redor das mesmas figuras, aumentando o exotismo.

Feito mar revolto na rebentação, a percussão introduz o estribilho: “Ele deve ter se surpreendido, Gauguin,/Quando suas mulheres com olhos de veludo/Choraram lágrimas de chuva/Que vinham do Mar do Norte”.

A cantora descreve possíveis encontros dos destinatários em um nível etéreo. “Vocês assistem juntos/O nascer do sol/Acima das lagunas/Onde galopam cavalos brancos”. A carta é assinada pela personagem Léonie, interpretada por Barbara no filme Franz (1971), escrito por Brel. Além de mencionar a famosa tela de Gauguin, a remetente finda a canção com um voto: “Durma bem!”.

Sete anos após o concerto no Mogador, Barbara selecionaria “Gauguin” para seu último clipe. No vídeo em preto e branco, a cantora, esta, sim, uma diva, já não alcança os agudos obscenos. Debate-se, em frente às câmeras, em busca de oxigênio. Nada que pudesse comprometer a bela interpretação. Barbara morreria, no mesmo ano, vítima de uma intoxicação alimentar.

De certa forma, o vídeo reúne elementos centrais de uma carreira impulsionada por marcas registradas: o delineador nos olhos, o piano de cauda, o vibrato ao fim de cada verso. Barbara sempre era vista com vestidos pretos, razão pela qual ganhou a alcunha de La dame brune. É conhecida pelas letras tristes e sombrias. Até os últimos concertos, hipnotizou as plateias com o seu olhar. Foi sinônimo de elegância, luxo e riqueza.

Barbara e seus “looks” da alta-costura francesa, c. 1960 Foto de autor não identificado.

A cantora manteve até o fim sua aura misteriosa. Não gostava de dar entrevistas e evitava falar do passado, um quebra-cabeça ainda não completamente resolvido. Sabemos, entretanto, que viveu um roteiro de filme de terror.

Nascida em 1930, Monique Andrée Serf, nome verdadeiro de Barbara, teve de aderir ao nomadismo com a família. A guerra iria estourar, e eles eram judeus. Durante muito tempo, os integrantes da família Serf se separaram. Certa vez, o trem em que Barbara atravessava a França foi bombardeado por nazistas, na altura da comuna de Châtillon. Ela foi a única pessoa que se salvou. O clássico “Mon enfance” (1968) traz reminiscências da vida errante.

Dos dez aos dezenove anos, Barbara foi abusada sexualmente pelo seu pai, Jacques Serf. Em 1959, a cantora recebeu a notícia de que ele estava muito doente em um hospital de Nantes. Barbara partiu, de imediato, para a cidade, mas não chegou a tempo de encontrá-lo com vida. Em 1964, a compositora lançava sua canção mais arrebatadora: “Nantes” descreve, ao modo de uma crônica, a saga de Barbara para se despedir do pai. A melodia dos versos iniciais é assoviada até hoje nos contextos mais banais. A letra da canção indica sentimentos controversos. Barbara diz: “Este vagabundo/Desapareceu”, ao passo que lamenta o atraso “Ele morreu nesta noite/Sem um adeus/Sem um eu te amo”.

A biografia trágica de Barbara não a credencia a um marco na chanson française. À época, o público sequer imaginava sua história. Poeta genial, ajudou a pavimentar novos rumos à música francesa. Era tempo de voltar às origens literárias do gênero, com a lembrança da frase de Paul Verlaine: “A música antes de tudo”. Foi uma ótima pianista, mestre na composição de valsas, e uma boa atriz.

O álbum L’aigle noir, de 1970, sedimentou a presença de Barbara no repertório mais popular. A canção homônima ao disco é uma espécie de poema épico que conta a história de uma águia negra, oriunda de lugar nenhum. A compositora emprestou sua voz ao amor e ao desamor. “Dis, quand reviendras-tu” (1987), “Du bout des lèvres” (1968) e “Ma plus belle histoire d’amour” (1967) são grandes sucessos de sua carreira.

Como se não bastasse, é de Barbara uma das canções mais importantes para a política francesa. “Gottingen”, do álbum Le mal de vivre (1964), ajudou a aproximar franceses e alemães, nos anos pós-guerra. O chanceler Gerhard Schroder chegou a citar a composição em seu discurso que celebrava os quarenta anos do Tratado do Eliseu. “Claro que não é o Sena/Não é o Bois de Vincennes/Mesmo assim, é muito bonito/Em Gottingen”. A faixa foi gravada em francês e alemão.

A personalidade sóbria de Barbara contrastou com o comportamento amável e divertido, adotado no cotidiano. Tratava técnicos e admiradores com afeto. Adorava fazer piadas nonsense. Passava longas horas ajustando o rouge da maquilagem e mostrava grande esmero com a afinação dos pianos. Em 1968, afirmou que seu sol era negro. Para nós, a música de Barbara tem a autoridade daquele sol branco, cuja luz inclemente nos assoma na saída dos cemitérios e reflete em parte alguma.

Assista ao clipe de “Gauguin” (1997)

Chove na ilha de Hiva Oa
O vento, nas longas árvores verdes,
Evola grãos molhados de areia cor ocre
Chove num céu de corais
Como uma chuva vinda do norte
Que nuança os vermelhos cor ocre
E os azuis-violetas de Gauguin
Chove
As marquesas se tornaram cinza
O zéfiro é um vento do norte
Naquela manhã
Sob a ilha que ainda dorme

Ele deve ter se surpreendido, Gauguin,
Quando suas mulheres de olhos de veludo
Choraram lágrimas de chuva
Que vinham do Mar do Norte
Ele deve ter se surpreendido, Gauguin,
Como um grande bailarino cansado
Com seu olhar de criança

Bom dia, senhor Gauguin
Me acolhe
Eu sou um viajante do norte
E venho dormir ao sol
Me acolhe
Eu sou um viajante do norte
E venho dormir ao sol
Me acolhe

Você sabe
Não é porque você partiu
Que me importo
Aliás, você nunca partiu
Não é porque você não canta mais
Que me importo

Aliás, pra mim, você ainda canta
Mas pensar que um dia
Os ventos que você gostava
Te tornaram ao contrário
Pensar
Que nunca mais
Você navegaria
Nem o céu, nem o mar

Nunca mais, em abril,
Tocar o lilás branco
Nunca mais ver o céu
Acima do canal
Mas quem pode dizer?
Eu que te conheço bem
Eu sei que hoje
Você acaricia
Os seios das mulheres de Gauguin

E que ele pinta Amsterdã
Vocês admiram juntos
O nascer do sol
Acima das lagunas
Onde galopam cavalos brancos
E teu riso me atinge
Em cascada, em torrente,
E atravessa o mar
E o céu e os ventos
E sua voz ainda canta

Ele deve ter se surpreendido, Gauguin,
Quando suas mulheres de olhos de veludo
Choraram lágrimas de chuva
Que vinham do mar do norte
Ele deve ter se surpreendido, Gauguin,

Eu sempre penso em você
Que se alongou nas dunas
E atravessou o norte
Para dormir ao sol
Lá, sob um céu de corais,
Era a sua vontade
Fique bem
Durma bem
Eu sempre penso em você

Assinado Léonie
Você sabe quem eu sou
Durma bem