A névoa poderia se chamar fog, mas a industrialização já havia transbordado para o outro lado da Mancha. No fim do século XIX, o espetáculo da pobreza era uma festa diáfana em Paris, cidade onde a visão da paisagem ficava, frequentemente, flou. O crepitar das máquinas servia de trilha sonora ao balé da maré humana, regido pelos ponteiros dos relógios. De dia, a multidão apinhava-se em direção ao trabalho fabril. À noite, a lufa-lufa dispersava-se até as casas, dando lugar, nas vielas, aos escroques e às prostitutas.

Em Paris, havia gente de toda sorte: na massa amorfa da multidão, os indivíduos instauravam realidades particulares. Uma delas pertencia a Charles Baudelaire, que, em 2021, completaria 200 anos. No clássico As flores do mal, de 1857, o poeta documentou o mundo em revolução. “A forma de uma cidade/Muda mais rapidamente que o coração mortal”, diz o poema “O cisne”.

Nos versos de Baudelaire, a modernidade é instaurada sob diversos aspectos. O autor inicia uma mudança de paradigma em relação à poesia do início do século XIX, uma vez que o seu eu-lírico se insere no espaço-tempo de uma forma inovadora. Surge o espírito baudelairiano.

O poeta ata-se à cidade, e a evasão torna-se impossível. Seus sentimentos são filtrados por sensações, em consonância com a vida de gestos automáticos e reações instintivas dos centros urbanos. Em consequência, a poesia passa a comportar palavras de origem prosaica e urbana, como “lixeira”, “candeeiro” e “balanço”.

No poema “Correspondências”, o poeta define o que seria a natureza e escolhe como cenário uma floresta intocada, algo próprio de um romantismo já superado. “A Natureza é um templo onde colunas vivas/Deixam, às vezes, escapar palavras confusas/Um homem passa por florestas de símbolos/Que o fitam com um olhar familiar”, diz a primeira estrofe. Se Baudelaire resgata o imaginário bucólico, ele acena, também, a um novo mundo.

Como em uma correspondência epistolar, a floresta de símbolos corresponde à cidade moderna. Na última estrofe, o eu-lírico alarga os sentidos dentro de um universo místico: “Contendo a expansão de objetos infinitos/Como âmbar, almíscar, o benjoim e o incenso/Que cantam o transporte do espírito e dos sentidos.”¹

Se a cidade é a nova floresta, Baudelaire se relaciona com Paris de uma forma particular. O leitor sabe que o poeta versa sobre a capital francesa a todo momento, mas, nos versos, a cidade-luz é anulada. Em outras palavras, Baudelaire não se comporta como um guia turístico. Não diz “aqui estão as Tulherias, aqui está o palácio de Versalhes”. Embriagado pelas sensações da modernidade, evoca elementos citadinos, localizados em regiões ermas de Paris.

Nascido em 9 de abril de 1821, Baudelaire perdeu o pai aos cinco anos. O menino ganhava, naquele momento, uma herança fausta, que seria rapidamente consumida pelo seu estilo de vida futuro. Na adolescência,  encontrou dificuldades de relacionamento com o padrasto, que não compreendia seu gosto pelas artes e a rebeldia contra os valores burgueses.

Baudelaire frequentava um clube de haxixe, onde intensificou o uso de drogas. As experiências seriam eternizadas, em 1860, com a publicação de Paraísos artificiais, uma coletânea de ensaios em que o poeta analisa os efeitos de haxixe, ópio e vinho. O autor relacionou-se com diversas prostitutas, que se tornariam amantes. Suas musas foram registradas logo na primeira edição de As flores do mal, censurada por insulto aos bons costumes. Baudelaire foi multado em trezentos francos e seis poemas tiveram de ser suprimidos na primeira publicação.

Na tentativa de diminuir a multa, escreveu uma carta, em 6 de novembro de 1857, à imperatriz Eugénie. “Madame, certamente, um poeta tem pródiga presunção de ocupar a atenção de Vossa Majestade com um caso tão pequeno quanto o meu. (…) Mas a multa, enriquecida de valores ininteligíveis para mim, ultrapassa as faculdades da pobreza proverbial de um poeta”. A súplica foi aceita, e a taxa caiu para cinquenta francos.

Foto: Reprodução das cartas de Charles Baudelaire à imperatriz Eugénie, 1857. Arquivo Nacional da França.

Baudelaire viveu, até o fim, como um dândi, assumindo a posição de flâneur pelas ruas de Paris.  Dois anos depois de sua morte, em 1867, causada pela sífilis, seus pequenos poemas em prosa foram publicados na recolha Le spleen de Paris. Nos últimos dez anos de vida, o autor trabalhava em “uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rima”, conforme escreveu em carta ao editor Arsène Houssaye, publicada no jornal La Presse, em 1862. Além de ter sido o precursor do novo gênero, Baudelaire intensificou o trabalho de análise da cidade moderna. “A nem todos é dada a virtude de tomar um banho de multidão: gozar da multidão é uma arte (…) multidão, solidão: termos iguais e transmutáveis para o poeta ativo e fecundo”, escreve em “As multidões”.

Percebemos, no poema, uma zona de tensão permanente entre o autor e a sociedade, sem a qual seria difícil conceber a poesia baudelairiana. Em carta à mãe, datada de dezembro de 1865, o poeta explicita sua atitude crítica. “Se algum dia eu encontrar a tensa força e a energia que já possuí algumas vezes, então darei vazão à minha cólera em livros que hão de despertar indignação. Quero que toda a raça humana fique contra mim. Isso me daria um prazer tão grande que me compensaria tudo”.

No livro Baudelaire e a modernidade, o filósofo alemão Walter Benjamin investiga o lugar do poeta de As flores do mal na multidão. Para o ensaísta, a obra baudelairiana é um exercício da faculdade do olhar. Dessa forma, a literatura faz-se por instantâneos, que abarcam a modernidade.

Benjamin preocupa-se em qualificar o olhar de Baudelaire. Ao mesmo tempo que  se confunde à multidão, o poeta inflige sua diferença ao delimitar um espaço na maré humana, próprio ao dândi flâneur. Nesse sentido, Baudelaire encontra poesia na decadência: o heroísmo pode estar na miséria. Décadence avec élégance. A descoberta tem inequívoca ligação à biografia do autor, mas permite que Benjamin conduza uma reflexão mais abrangente.

Foram muitos os poemas dedicados a Victor Hugo, mas Baudelaire tinha, em relação ao mestre da literatura romântica francesa, uma diferença peremptória. Hugo escrevia sobre a multidão, ao passo que Baudelaire versava desde a multidão, de tal forma que um mundo se abriu entre os escritores. Não à toa, o poeta espinafrou a visão ensimesmada do romancista em uma carta, de janeiro de 1860, a um desconhecido. “V. Hugo continua me enviando cartas estúpidas. Tudo isso me inspira tanto tédio que me sinto disposto a escrever um ensaio provando que, por uma lei fatal, o gênio é sempre besta”.

No fim do século XIX, já não era possível haver a segurança de um herói romântico. “Pois o herói moderno não é herói – representa papéis de herói”, explica Benjamin. No âmago do capitalismo nascituro, o poeta encontra o heroísmo em transfigurações, normalmente decadentes: dândi, flâneur, apache ou trapeiro. Se estivesse vivo, seria pertinente Baudelaire escolher a transfiguração miserável de um jovem jornalista. Especulações dessa ordem são cabíveis. Afinal, o autor, durante a vida, nutriu uma grande angústia: queria ser lido, eternamente, com o mesmo prestígio de um poeta da antiguidade.

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Autômatos desalmados lotam o metrô. Todos estão trajados de uniforme azul-petróleo, cor similar ao aspecto acinzentado do vagão. Anestesiados,  dormem acordados. É hora de ir ao trabalho. Ao soar da música, a massa amorfa sonada bate cabeças e usa as mãos, em movimentos robóticos, para segurá-las. Coreografado por Damien Jalet e dirigido por Paul Thomas Anderson, Anima (2019) é o brilhante curta-metragem do álbum homônimo do multiartista inglês – e vocalista do Radiohead – Thom Yorke. Sua participação no filme, em catálogo na Netflix, atualiza dilemas baudelairianos, sob a perspectiva da quarta revolução industrial.

O primeiro verso cantado por Yorke, oriundo da canção Not the news é sugestivo: Who are these people? (“Quem são estas pessoas?”). O desconhecido é uma questão paradigmática à compreensão da obra de Baudelaire. Enfrentando o mundo moderno, o poeta deparou-se com estruturas socioeconômicas inéditas, sensação realizada, na multidão, em esbarrões em desconhecidos. Acontecimentos fugazes, materializados em sustos. O famoso poema “A uma passante”, de As flores do mal, exemplifica a questão: “Beleza fugitiva/Cujo olhar me fez repentinamente renascer (…)/Alhures, bem longe daqui!/Demasiado tarde!/Nunca talvez!/Não sei aonde foi, não sabes aonde vou/Tu que eu teria amado, tu que sabias sim!”

Para nós, em pleno século XXI, é inapropriado chamar pelo desconhecido. Entre Baudelaire e nós, existe a psicanálise. Em 1919, Sigmund Freud publica o ensaio O estranho familiar, retomando algumas noções dos contos de E.T.A Hoffman. O conceito de estranho-familiar refere-se às situações em que o sujeito não se depara, propriamente, com o desconhecido. De maneira inconsciente, inquieta-se com algo estranhamente familiar. O estranho-familiar nos remete, é claro, ao embate indivíduo versus multidão.

Logo, em Anima, a alienação dos bailarinos não é totalmente estranha a Yorke, inquieto, sobretudo por ter de cumprir uma jornada heroica. Ainda no metrô, percebe que uma popular havia esquecido sua lancheira. Yorke inicia uma saga para tentar devolver o objeto à amada, protagonizando cenas de extrema delicadeza – e refinamento fotográfico.

Em um plano político, indivíduo versus multidão transmuta-se em público versus privado. Compreender as motivações políticas de Baudelaire é missão ingrata, mas, na França pós-revolução de 1848, a barricada tornou-se o signo do entrelaçamento entre as duas esferas. Baudelaire rejeitava a separação desses espaços, como preconizava a burguesia.

Hoje, a barricada está inserida na virtualidade. Os alienados de Anima poderiam estar absortos no Instagram, o buraco da fechadura do mundo contemporâneo, acompanhando influencers, subcelebridades de longo alcance. A clivagem público versus privado está na esfera da comunicação e faltou, durante muito tempo, maturidade baudelairiana ao debate. Diversos artistas e, claro, semideuses da academia tiveram a mesma ingenuidade dos militantes de diretórios acadêmicos, na crença de que a democracia seria fortalecida com a virtualidade. A internet em si não desestabilizou a política ocidental, porque o mundo virtual está no campo da linguagem e não se contrapõe ao real. Por outro lado, a democracia também está em xeque por mecanismos próprios à mesma linguagem.

Não há nada a fazer, portanto, senão enfrentar o presente. Baudelaire não é lido como um poeta antigo. Seu prestígio é maior a cada segundo: ao enfrentar a cidade moderna, atingiu, com inédita e avassaladora beleza, o futuro. De resto, é como diz o poema “O gosto do nada”, de As flores do mal: “Conforta-te a minha alma ao sono que te enluta/Perdeu a doce primavera o seu odor”.


N.S: Traduções do autor.