Quem lê o depoimento de Drummond escrito em 28 de fevereiro de 1964, logo depois de ter visto Itinerário da infância, a primeira exposição de Alécio de Andrade, reconhece que o poeta de Itabira acertou em cheio ao afirmar que a criação do fotógrafo carioca constitui “um poderoso, delicado e inesquecível comentário lírico do mundo”.

Foi sob o aplauso da mostra, realizada na Petite Galerie, em Ipanema, e sob a perplexidade de que era tomado naquele ano em que o Brasil entrava no regime militar, que o fotógrafo carioca de 26 anos, além de pianista talentoso e, àquela ocasião, já poeta premiado, saiu do país para estudar no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, em Paris, com bolsa oferecida pelo governo francês.

Aqui deixava, de frente para o mar do Leblon, uma família de pai, mãe, irmão e duas irmãs, além de, na cidade, amigos com quem manteria correspondência ao longo de anos, agora parcialmente reunida no livro Cartas de… a Alécio de Andrade.

Por meio de diálogo epistolar com remetentes graúdos como Drummond, Otto Lara Resende, Marques Rebelo, Fernando Sabino e outros, além do próprio pai, Almir de Andrade, o leitor vai conhecendo um pouco da vida desse brasileiro que à sua terra só voltaria de visita: Alécio brilhou em Paris até a morte, em 2003, aos 65 anos de idade.

As cartas de abertura do livro são do pai, o professor de Direito e ensaísta Almir de Andrade. Numa época em que não havia a facilidade do telefone que há hoje, a notícia do casamento de Andiara, a irmã mais velha de Alécio, soa como total novidade. E que impacto terá causado no irmão esta carta endereçada ao Hotel du Senat, Rue Saint Sulpice, 22, antes que ele tivesse endereço fixo na capital francesa – é o que se imagina. Assim como a risada que ele terá dado ao ler, nas palavras do pai, que a “libido construtora” de sua mãe a fazia construir para Andiara uma casa em Jacarepaguá.

As notícias familiares deixavam sempre espaço para que o pai revelasse o quanto acompanhava a carreira do filho. Interrompera ele a colaboração na revista Elle? Por quê? Queria saber Almir de Andrade. Nunca deixou de seguir, de longe, as conquistas de Alécio, o primeiro brasileiro a se associar à prestigiosa Agência Magnum, entre 1970 e 1976, além de trabalhar para as grandes revistas europeias. Nem por isso deixou o artista de manter os vínculos afetivos e profissionais com o seu país. São suas, por exemplo, as imagens dos protestos nas ruas de Paris em maio de 1968 para a revista Manchete, em que foi colaborador de 1966 a 1973.

Se não falta graça em algumas cartas paternas,  não deixa de haver nelas, igualmente, em 1965, preocupação com o momento político do país, preocupação que cala estranhamente atual. Movido pelos temores do idealismo do filho mais novo, o futuro ator Roberto Bomfim, então um rapaz de 20 anos, Almir de Andrade escreve, como se fosse hoje:

Preocupa-me  bastante esse caráter apaixonado dos teus dois irmãos mais moços. São demasiadamente sinceros consigo mesmos e totalmente imersos nas suas próprias convicções (Naruna inclusive). Preocupa-me, porque nas horas difíceis  da vida são sempre os apaixonados e os sinceros que se sacrificam pelos espertos e oportunistas. E desde que o mundo é mundo, a popularidade esteve e estará sempre com estes últimos; e, com a popularidade, a força e o comando. Roberto, especialmente, faz de suas convicções e ideais de luta razões de viver – o que, em certas circunstâncias, pode significar também razões de morrer. Temo por ele – como temo, um pouco menos, por Naruna – nestes anos agitados do futuro que nos espera, pois pressinto que haverá situações incontroláveis

As cartas de Almir de Andrade vão até 1985, quando o fotógrafo e Patricia Newcomer, sua companheira, têm o primeiro filho, Florencio, fartamente fotografado pelo pai – não podia ser diferente –, como o seria depois, ao lado do irmão mais novo, Balthazar.

O projeto editorial do livro, de autoria de Patricia Newcomer, prevê, em continuação às cartas de Almir, a pequena mas expressiva correspondência de Drummond, e, depois, a do amigo Bulhões de Carvalho, que mistura afeto e erudição. Mais abundantes são as cartas do bibliófilo Ismael Cardim. Divertidas ou doloridas, mostram a intimidade dos dois amigos: “Espero que você consiga amar alguém aí: Paris ainda fica mais bonita”, escreve Cardim, ainda em 1965, sublinhando o verbo amar. Era para levar o conselho a sério.

Na década de 1980, na rua des Rosiers, 19, no charmoso bairro parisiense do Marais, as cartas de Cardim continuavam a chegar. Nesse endereço, que se tornaria famoso, Alécio improvisava apresentações ao piano que encantavam os amigos. Foi nessa década que ele conheceu e se aproximou do também pianista e poeta Alfred Brendel, um dos grandes da época e que o brasileiro fotografaria durante anos para capas de discos.

“Ao sol, carta é farol”, já dizia, com razão, Mário de Andrade. A correspondência de amigos como a de Otto Lara Resende a Alécio revela, não só do remetente, como de terceiros. É o que acontece em 1988, quando morre Hélio Pellegrino e Otto desabafa sobre o caráter inelutável da morte:

Você, tão sensível, que tudo sabe, imagina então o que foi para mim a brutalidade da notícia. Pior: da realidade – o Hélio vivo, ainda quente de vida, estendido na cama, poucas horas depois de me jurar que não ia morrer, que eu dormisse tranquilo e passasse cedinho lá na clínica.

Otto seria fotografado por Alécio de braços abertos, acolhedor e torrencial – é o que pode ser visto na exposição que abre neste sábado, 20 de outubro de 2018,  no IMS – Rio de Janeiro, neste momento em que escrevo. A Otto se juntam a inquietude de Fernando Sabino, captada num instante, a elegância descontraída de Ferreira Gullar ao lado do cronista Carlinhos de Oliveira numa rua de Buenos Aires, e mais quatro dezenas de outros perfis.

As fotos expõem a essência do fotografado, assim como de essência fraterna se constituem as cartas. Fotos e cartas se complementam, quando se trata de portraits. Mas a fotografia de Alécio oferece outras possibilidades de interpretação da imagem, como escreveu Pedro de Souza, o amigo português do brasileiro, no livro de fotos do amigo publicado pelo IMS em 2008: “O tempo do fotógrafo precede e acompanha o olhar, capta o tempo dos outros e, no caso de Alécio, ensina-nos que nada é forçosamente aquilo que parece”.