“Ontem vi A noite americana. Provavelmente ninguém te chamará de mentiroso, mas eu o chamo”. É com essa acusação que Jean-Luc Godard começa a carta de 1973 que daria fim à sua amizade de duas décadas com François Truffaut. “Comportamento de um merda em um pedestal”, diz o outro, em resposta não menos agressiva.

Havia tempo, os dois mais célebres diretores da Nouvelle Vague esboçavam divergências. A gota d’água veio com a estreia do 13º filme de Truffaut, e o resultado são duas violentas cartas, uma de cada diretor, em que fazem ataques pessoais, incriminam a posição política um do outro e expõem rancores passados.  Tendo o apolitismo do amigo como um de seus maiores desgostos, Godard continua:

Você diz que filmes são como trens no meio da noite, mas quem pega esse trem, de que classe social, quem os conduz? […] Se você não fala do Trans-Europa,[1] pode ser o trem da periferia, ou o de Dachau-Munique.

Naquela época, Godard e Truffaut já eram mundialmente conhecidos, e o caminho até lá se iniciara anos antes. Começaram juntos no cinema assinando críticas na revista especializada Cahiers du Cinéma, nos anos 1950. Partilhavam da cinefilia daqueles anos e de uma enorme inquietação contra o cinema francês de então, que consideravam artificial, viciado e, sobretudo, chato. Foi justamente criticando esse modelo no artigo “Uma certa tendência do cinema francês”, na Cahiers, que Truffaut marcou o início da chamada Nouvelle Vague, movimento que permitiu diversos avanços na linguagem cinematográfica. Truffaut. com Os incompreendidos (1959), Godard, com Acossado (1960, com ideia original do amigo), inscreviam seus nomes como cineastas que marcariam a história do cinema.

Enquanto filmavam, na década de 1960, a dupla viu a tensão política na França crescer desde o fim da guerra da Argélia até as revoltas estudantis e proletárias de  maio de 1968. Godard, descendente de banqueiros, politiza-se e começa a fazer crítica social por meio de seus filmes, iniciando com O pequeno soldado. Naquele 68, enquanto as revoltas tomavam corpo, o diretor se posiciona contra a realização do Festival de Cannes, declarando não haver na França um único filme que abordasse os problemas sociais que enfrentavam. Era o começo da radicalização, que culminaria na fase maoísta dos anos seguintes, tornando o engajamento político uma de suas principais características.

Truffaut, por sua vez, continuava a produzir dramas com roteiros que Godard não hesitaria em classificar de “burgueses”. Em A noite americana, de 1973, estopim do rompimento entre os diretores, ele usa o próprio cinema como pano de fundo ao contar a história da produção de um filme com todas as diversas intrigas entre equipe, elenco, cineasta e as situações dramáticas que resultam desse processo. O filme, sucesso que mais tarde levaria o Oscar, era demais para Godard e sua já antiga irritação com o apolitismo do amigo. Além disso, agora ele sentia-se ofendido com a ideia de cinema que Truffaut transmitia na nova película. A carta veio como um golpe que terminava assim: “Visto A noite americana, você deveria me ajudar, pois os espectadores não creem que só se façam filmes do seu jeito”.

Por fim, Godard pede dinheiro para produzir um filme que mostraria como o cinema é feito a partir da porção mais humilde e explorada da equipe de filmagem. Junto da carta, envia outra destinada ao ator Jean-Pierre Léaud e pede que Truffaut a entregue. A mensagem nunca foi recebida, já que Truffaut, indignado com o tratamento dado ao ator, devolveu-a  a Godard junto com sua resposta, texto de vinte páginas, de que se destaca o seguinte parágrafo:

Você mudou sua vida, seu cérebro e, mesmo assim, continua a perder horas no cinema perturbando seus olhos. Por quê? Para achar o que alimenta seu desprezo por todos nós, para reforçar suas novas certezas? […] você detém a verdade sobre a vida, a política, o engajamento, o cinema, o amor, tudo isso é muito claro pra você e quem pensar diferente é um idiota, ainda que você já não pense em junho o que pensava em abril.

Como Godard na primeira carta, Truffaut termina a sua do mesmo jeito: “Se quiser conversar, tudo bem”. Não conversaram. Ao que se sabe, os dois nunca mais se falaram até a morte de Truffaut, em 1984. Godard, hoje com 85 anos, continua dirigindo produções premiadas, entre as quais Adeus à linguagem, que levou o prêmio do júri de 2014 em Cannes.

[1] Linha de trens luxuosos que ligavam a Europa na segunda metade do século XX.