“Miss Dollar” é um dos poucos contos de Machado de Assis publicados diretamente em coletâneas editadas pelo próprio escritor. A história abre os Contos fluminenses, lançado em 1870 pela editora Garnier. O livro inaugura um período que, se não é considerado o principal de sua obra (isso ocorreria a partir de 1880 com a publicação em folhetim de Memórias póstumas de Brás Cubas), certamente é fértil na investigação de Machado a respeito dos caminhos da prosa. Afinal, ao longo da década de 1870, ele produziria seus quatro primeiros romances em intervalos disciplinados de dois anos – Ressureição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Durante esse período e além, Machado faz do conto um espaço experimental em que temas, personagens e tramas seriam depois expandidas ou aprofundadas em seus romances.

Segundo John Gledson, “Miss Dollar” é um desses casos. A história, envolvendo uma viúva hesitante em aceitar um novo casamento por conta do possível interesse em sua herança, deságua no imbróglio afetivo entre Félix, um advogado, e Lívia, a viúva, ambos personagens principais de Ressureição. Como em muitas outras ocasiões, Machado faz do conto o laboratório de escrita para as suas narrativas romanescas. Das soluções engenhosas presentes nas formas curtas, ele encontrava recursos para a experimentação das formas longas.

Em uma brevíssima sinopse da história, Mendonça, jovem médico, era um colecionador de cães. Encontra na rua uma cadela perdida, a Miss Dollar que dá nome ao conto. Após ver um anúncio reclamando o seu retorno mediante recompensa, fica compungido pela dor dos donos originais e resolve devolvê-la aos mesmos. Encontra-os numa casa na rua de Matacavalos, onde conhece Margarida, jovem de magníficos olhos verdes, que morava com a tia idosa, d. Antônia. Segundo o narrador, Mendonça nunca havia visto tal cor no olhar de uma moça. Aqui, vemos Machado exercer, talvez pela primeira vez, a relação metafórica entre olhos, mar e tragédia, como faria vinte anos mais tarde em Dom Casmurro (os famosos “olhos de ressaca” de Capitu). Citando a fala de Mendonça, “a cor verde é a cor do mar” e, portanto, “evito as tempestades de um; evitarei as tempestades dos outros”. Ele não só não evitará a tempestade, como acabará se perdendo na tormenta. O desenlace é típico dessas tramas, com Mendonça se apaixonando por Margarida e recebendo seguidas negativas às suas mais que polidas e precavidas investidas. Após meses e algumas situações que aos poucos o exasperam, ele resolve praticar um ato de desespero: escrever uma carta.

Aqui, abre-se um parêntese no conto e neste texto: Mendonça tinha um amigo, Andrade, cujo papel de confidente das situações amorosas do primeiro o levava a fazer especulações sobre a vida do segundo. O fato é que Andrade conhecia Margarida e d. Antônia, porém essa informação é revelada por meio de uma elipse, já que só sabemos exatamente a procedência do vínculo após o episódio da carta. É ele que conta ao médico que Margarida era viúva havia três anos, que já tinha recusado cinco pretendentes anteriormente e que a conquista não seria nada fácil.

Voltemos à carta de Mendonça. O conto nos leva até o ato do missivista, fazendo com que o leitor entenda perfeitamente a motivação de sua escrita. Sem saber como furar os bloqueios sociais das conversas vazias de salão da época e evitar o constrangimento de se aproximar fisicamente de uma viúva, sem que isso lhe afetasse a reputação, o médico não conseguia uma brecha para se declarar a Margarida. Assim, a carta seria um meio respeitoso – e literário – de lhe dizer dos seus sentimentos. A escrita era necessária e urgente como única forma de revelar seu amor – ou, nas palavras de Machado, “confiando que no papel diria as coisas de muito melhor maneira que de boca”. A escrita, em tom frio e reflexivo, tem como interlúdio um almoço antes do envio. A carta segue para Margarida “dentro de um volume de George Sand”. O detalhe não é gratuito: em outra passagem do conto Machado situa Margarida na seara das moças solitárias que liam literatura em seus tempos de ócio. A escolha da romancista francesa, popular na época, demonstra que Mendonça enviara a carta em uma embalagem minimamente simpática aos hábitos de leitura de sua amada.

A carta, longa, traz três parágrafos em que Mendonça respeita a “esquivança” de Margarida, mas reivindica o direito de insurgência e queixa. O mote é a tensão entre seu amor e a indiferença da amada ao sentimento que nutre por ela. Cruza uma linha de reserva e lhe pergunta o porquê de, sendo dona de tamanha beleza, negar o amor “na idade das paixões férvidas”. Por fim, sabendo que poderia ter ofendido a viúva, arremata: “Rasgue a carta que não pode valer-lhe uma recordação, nem representar uma arma”. Aqui, o narrador machadiano, uma de suas especialidades, convida o leitor a aderir ao projeto do médico apaixonado. Diz que não terá escapado a quem o lê “a sinceridade e a simplicidade com que Mendonça pedia uma explicação que Margarida provavelmente não podia dar”.

É neste trecho do conto que Andrade volta à cena, revelando a história subterrânea de sua presença na trama. Ao contar ao amigo que tinha enviado a carta, Mendonça recebe como resposta uma gargalhada (cruel a essa altura) e um comentário devastador: “estragaste tudo. Os outros pretendentes (incluindo o próprio Andrade – eis aí como ele já conhecia a viúva) começaram também por carta: foi justamente a certidão de óbito do amor”.

Se o conto de Machado não é sobre a carta em si, é ela que detona a virada final da trama. A resposta de Margarida é seca e dura – “Perdoo-lhe tudo; não lhe perdoarei se me escrever outra vez. A minha esquivança não tem nenhuma causa: é questão de temperamento”. Achando que tal brevidade escondia mais do que revelava, Mendonça abandona qualquer pudor e envia uma suicida segunda carta. Machado, de forma sagaz, omite o conteúdo da mesma e só nos faz saber que o envelope voltara intacto ao remetente. Sem resposta, naturalmente. Desconhecendo os termos da carta, fica ao leitor apenas o registro de um silêncio. Aparentemente, era o fim de tudo e Mendonça desiste do relacionamento.

Uma sequência de eventos envolvendo outro personagem da trama – Jorge, filho boêmio de d. Antônia, que invariavelmente informava Mendonça da rotina da família e, principalmente, de sua prima, faz com que o médico saiba que Margarida pretendia passar dois meses fora da cidade. Um bilhete da tia pedindo sua presença na casa da rua Matacavalos (novamente a correspondência) faz com que ele vá imediatamente ao endereço. A casa, silenciosa, indicava que todos dormiam, mas a luz acesa em um quarto mostrava sua amada – a essa altura obsessão – ainda acordada. Um portão entreaberto do jardim faz com que Mendonça sucumba à tempestade dos olhos verdes e acabe invadindo, em um arroubo noturno, o quarto da viúva. Sua presença indiscreta ao extremo faz com que não haja outra saída – “inevitável” são as palavras dela – a não ser o casamento entre os dois. Um matrimônio sem desejo e por mera proteção à dignidade pública de Margarida. Tempos depois, provado que Mendonça não estava interessado em seus cabedais – eis o motivo da esquivança da viúva – consumam o casamento e Machado encerra o conto descrevendo de forma sucinta o destino de cada personagem após os fatos narrados.

O lugar das cartas na trama de “Miss Dollar” pode ser residual, porém Machado as torna dispositivos fundamentais para que Mendonça possa mover a história, saindo de sua mudez social para a expressão do sentimento amoroso e do rancor pelas negativas da viúva. Além disso, sempre pensando em como cativar o leitor, o autor sabe que a carta faz com que o conto ganhe uma dimensão extra, já que nos priva do conteúdo supostamente restrito a Margarida. Com a primeira carta aberta, sabemos o que atravessa o médico e, como o escritor pede, criamos empatia com sua situação. Já com a segunda carta, de conteúdo oculto, ficamos suspensos, imaginando o que pode ter sido a tréplica que sequer teve direito de resposta.

Por fim, se como disse Andrade, a carta para Margarida seria “a certidão de óbito do amor”, a ousadia de Mendonça em insistir nas missivas fez com que tal morte fosse esconjurada. Ao contrário dos cinco pretendentes anteriores, ele consegue atravessar a tempestade se arremessando em seu epicentro, até se transformar, como o batizou Andrade, no “Colombo do Amor”. Suas correspondências exasperadas, no fim das contas, foram cartas náuticas para que conseguisse cruzar, enfim, o mar revolto daqueles olhos verdes.