No dia 8 de outubro de 1998 o fax da casa de José Saramago, em Lanzarote, no arquipélago das Canárias, trabalhou sem descanso. A partir do momento em que, em Estocolmo, o nome do escritor português foi anunciado vencedor do Prêmio Nobel daquele ano pela Academia Sueca de Letras, começaram a chegar à residência do autor de Memorial do Convento mensagens vindas de todas as partes do mundo.

Saramago estava na Alemanha, onde participava da prestigiada Feira do Livro de Frankfurt, e só conseguiu chegar à ilha espanhola três dias depois de ter se tornado o novo Nobel de Literatura – fora convencido a permanecer um dia mais na cidade alemã e só depois viajou a Madri, onde novamente deu coletivas de imprensa e foi festejado por seus editores.

Quando finalmente desembarcou em Lanzarote, deparou com a pilha de cartas, faxes, telegramas e cartões-postais que personalidades da política, da cultura e amigos haviam enviado para parabenizá-lo pela conquista. Naquela montanha de papel estava a mensagem do escritor uruguaio Eduardo Galeano, enviada por fax, na quinta-feira, dia 8 de outubro, minutos depois de ter tomado conhecimento do Nobel de Literatura daquele ano. Escrita à mão e com direito a desenho, a carta diz assim:

De Montevideu, no dia do Nobel
A Pilar,
A José,

Eu achava que o mundo estava de pernas para o ar, mas agora veio a mosca da dúvida: Será que a justiça deu por começar a existir?

Beijos e abraços de Helena,
Galeano

Devido à loucura em que sua vida tinha se transformado, o português demorou alguns dias para responder ao amigo uruguaio. De Lisboa, para onde um avião fretado pelo governo português o havia levado, entre compromissos, homenagens e entrevistas, Saramago encontrou tempo para redigir, em espanhol, uma mensagem dirigida ao autor de Veias abertas da América Latina. Também escrita à mão e transmitida por fax, a mensagem, do dia 19 de outubro, reza:

Para Helena e Eduardo

De Pilar e José

Lisboa, três dias depois de Pinochet!

Queridos,
pois sim, a justiça existe e Pinochet (esperamos) vai sabê-lo.
Obrigado pela vossa carta e pela vossa alegria.
Vemo-nos em breve em Lanzarote?

Abraço infinito,

José
Y Pilar (bien, bien, bien)

A referência a Augusto Pinochet diz respeito à prisão do ditador chileno, em Londres, no dia 16 de outubro de 1998. O então senador vitalício do Congresso do Chile havia viajado à Inglaterra para ser submetido a uma cirurgia na coluna e, quando se recuperava da intervenção em uma clínica, foi detido pela polícia britânica e colocado em prisão domiciliar. A ordem internacional de detenção fora expedida pelo juiz espanhol Baltasar Garzón, que acusava Pinochet de crimes de lesa-humanidade e pedia a sua extradição para a Espanha. Por fim, após um longo embrolho jurídico, o ditador foi declarado mentalmente incapaz de ser julgado e, em março de 2000, regressou ao Chile. Morreu seis anos depois sem ser julgado pelas violações de direitos humanos que cometeu.

O casal Eduardo Galeano e Helena Villagra estivera em Lanzarote em 2002. Saramago e o escritor uruguaio também se viram em Montevidéu, em Porto Alegre e em Madri. Em encontros privados ou públicos, conversaram sobre as injustiças (e algumas justiças) do mundo, discutiram sobre política e literatura, e celebraram a amizade.

No dia 18 de junho de 2010, quando José Saramago, aos 87 anos, morreu, Eduardo Galeano disse: “Essa voz nos fará falta ainda que seguirá ressoando a partir de seus livros. Seguirá estando, sempre esteve, do lado dos perdedores”.  O corpo do escritor português foi velado no edifício da biblioteca que mandou construir, na ilha que dizia ser a sua jangada de pedra, com parte do dinheiro do Nobel. Entre os milhares de livros que fizeram companhia a Saramago naquela sua última noite em Lanzarote – seria cremado em Portugal – estavam algumas obras do amigo uruguaio, todas elas com dedicatórias..

Galeano faleceu em Montevideu, no dia 13 de abril de 2015, aos 74 anos.