“A vida, nestas paragens, é tão isolada e triste (as demoras dos jornais são de semanas) que as cartas são a coisa mais importante do mundo para nós”, escreve o alferes (subtenente) António Lobo Antunes numa carta de 1º de fevereiro de 1971.

No dia 6 de janeiro daquele ano, ele partira de Lisboa, com outros dois mil militares portugueses, rumo a Luanda. Ainda no navio Vera Cruz, o médico – e futuro escritor – começa a escrever. “As saudades são já indescritíveis, e a solidão enorme, ao fim de nove dias de barco […]. Amanhã chegaremos às duas da tarde. Entretanto, já só faltam 103 semanas, todas curtas. Menos umas dez, de férias. Não é assim tão mau”.

Durante os 27 meses que está em serviço na África, envia, quase diariamente, cartas a Maria José, sua mulher, que ficara em Portugal, grávida. Entre janeiro de 1971 e março de 1973, com interrupções pelas férias em Lisboa e as visitas de Maria José (com a filha) a Angola, foram cerca de trezentas missivas enviadas.

Por décadas esse volume de correspondência esteve guardado em segredo com a primeira mulher de Lobo Antunes – se separaram em 1979 –, até serem publicadas em 2005 no livro D’este viver aqui neste papel descripto, editado pelas filhas do casal. No prólogo, contam que um dos últimos desejos da mãe, falecida em 1999 foi que essas mensagens se tornassem públicas.

Quando foi mandado para a guerra, Lobo Antunes tinha 28 anos, era um médico recém-formado e tinha casado havia pouco tempo. Ao voltar, dois anos depois, trouxe consigo o manuscrito de um livro e a certeza de que queria ser escritor. Teria ainda que esperar uns anos para, em 1979, publicar Os cus dos Judas, romance autobiográfico que descreve a dor que a distância e o absurdo da guerra provocam num homem. A partir de então, a sua produção literária será fértil e bastante premiada.

A literatura é um assunto recorrente nas cartas escritas durante esse tempo na África. “Em vez de me mandarem comida enlatada eu prefiro livros, se pudesse ser. Farto de latas ando eu”, pede numa das mensagens. São frequentes os comentários sobre o que lê naquele período: “Destes escritores sul-americanos o melhor, penso eu, acaba por ser Ernesto Sábato, sobretudo naquele espantoso ‘Relatório sobre os cegos’,[1] que é das coisas mais extraordinárias deste tempo, e, depois, o Cem anos de solidão, sobretudo o princípio, com a descoberta do gelo e a história da dentadura nova do cigano Melquiades”.

São também constantes os relatos de Lobo Antunes sobre as histórias que tenta construir. Às vezes parece eufórico, convicto de estar escrevendo algo de qualidade (“Acho que valeu a pena acreditares em mim, porque, finalmente, tornei-me um escritor, com uma elegância corrosiva inigualável”), outras, deixa-se cair no pessimismo, manifesta dúvidas e incertezas com a sua criação – chega a pedir à mulher que queime tudo o que lhe enviara para ler:

A minha historietazona lá avança a passo de caracol, porque me faltam o entusiasmo e o estilo […]. Vamos ver se amanhã, segunda-feira – é hoje um triste domingo chuvoso e sem esperança – começo, de novo, a pensar no livro, embora viva habitado por uma lassidão imensa. Apetece-me, apenas, sentar-me sem fazer nada à espera de que o tempo passe. Que vontade eu tenho de me ir embora daqui!

Muitas vezes as cartas do jovem Lobo Antunes trazem queixas e angústias: o “insuportável” e “diabólico” calor, as assustadoras tempestades tropicais, a demora dos correios para que lhe cheguem cartas, o tempo que se arrasta e as férias que nunca chegam, a falta de condições sanitárias, a péssima comida, a dificuldade para dormir. Às vezes a beleza da África serve de consolo. “Este continente é maravilhoso de vida, de energia, de juventude, de imaginação. Para quem pertence a um país cansado faz bem ver estes verdes, estes sons, esta exuberância animal”.

Perturbadores são os relatos sobre a guerra, o dia a dia de um médico que, ao ver tantas mortes e sentir-se impotente, intui que “nunca mais será a pessoa que foi”. Após um confronto, encontra um homem ferido, já sem uma perna. “A única frase que ele dizia era o meu pai quando souber mata-se, o meu pai quando souber mata-se. Outro estava cego, e outro cheio de estilhaços, um negro, e rezava em voz alta. Nunca mais hei-de esquecer disto”, lê-se. No entanto, por ora o medo e a angústia dão lugar à adrenalina de viver no limite: “Começo a compreender Che Guevara: há qualquer coisa de realmente emocionante nisto, palavra, e até o contato frio e duro da espingarda é agradável. Talvez, realmente, como o Hemingway sustentava, a experiência da guerra seja importante para um homem”.

A paternidade à distância é um dos momentos mais intensos e comoventes das cartas do futuro escritor. Ali está um pai que sonha com o bebê prestes a nascer, que pergunta sobre o desenvolvimento da gravidez, que se preocupa com a mulher, e que tem ansiedade para ser pai: “Quando é que essa criança se resolve nascer?”. E quando por fim isso acontece, escreve uma carta à filha recém-nascida: “Minha querida filhinha. Soube ontem que você tinha nascido, e não pode calcular a alegria que essa notícia me deu. Não sei o dia, não sei a hora, não sei como foi. Mas sei que você já cá está, no mundo, e isso é que é importante. Sou o seu pai. Há nove meses que tenho por si um amor como nunca tive por ninguém”. E outra à mulher: “Como é ela? Baixinho para que ela não nos oiça. Quero saber tudo. Tudo. Que alegria me deste. Tiveram que repetir na rádio filha, filha, antes que eu percebesse […]. Estou tão aparvalhado de felicidade que não digo coisa com coisa. Só me apetece repetir muito obrigado, muito obrigado, muito obrigado até ao fim do papel”.

Não há, nas centenas de carta, uma só onde o amor e a saudade não figurem. “Minha única e formosa joia. Mais um longo, triste e quentíssimo dia sem ti. À entrada de Gago Coutinho[2] há uma placa que diz: Lisboa – 9.600km / Moscovo – 13.500 Km que serve bem para medir a horrível distância que nos separa”. “Recebi duas fotografias tuas […] vejo que estás cada vez mais bonita e apetitosa: a gravidez melhorou-te, se possível, ainda mais. Neste ritmo, sinceramente, só espero que não vás para a Via Veneto filmar com o Fellini”. E embora toda a distância, incerteza e medos, também há esperança. “Meu Deus eu gosto tudo tudo tudo de ti, sempre. Com toda a força e toda a ternura. Até ao fim do mundo. E só isso me ajuda a resistir”.

As cartas de Lobo Antunes foram levadas ao cinema. Cartas da Guerra, do diretor Ivo M. Ferreira, foi escolhido pela Academia Portuguesa de Cinema para representar o país na categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar de 2017.

[1] Parte do romance Sobre heróis e tumbas, editado pela Companhia das Letras em 2002.
[2] Cidade onde permaneceu a maior parte do tempo.