Há 130 anos nascia, no Recife, aquele que ficaria conhecido como o Poeta de Pasárgada. Manuel Carneiro de Sousa Bandeira chegou ao mundo no dia 19 de abril de 1886 e, ainda jovem, foi transplantado para o Rio de Janeiro, onde viveu até o último dia de vida. No seu exílio, que se tornaria voluntário, conseguiu resolver uma equação invejável: sem esquecer sua cidade de origem – queria estar lúcido na hora da morte para lhe enviar um último pensamento, como se lê no poema “Recife” –, desejava morrer sob os “céus serenos” do Rio de Janeiro, “porque assim”, escreveu na louvação à capital carioca, “sentirei menos/ O meu despejo de cá”.

Atingido pela tuberculose aos 18 anos – dizia que a doença lhe caíra como “uma machadada de Brucutu” –, desde a adolescência Bandeira contaria com a chegada da “Dama branca”, aquela que, como no poema de mesmo nome, lhe “sorriu em todos os desenganos”. Acostumado, portanto, com a apreensão da morte, tema de que tratou largamente na sua obra, aos 54 anos começou a pôr a vida na balança por meio do antológico “Testamento”, de Lira dos cinquent’anos: “Criou-me desde eu menino,/ Para arquiteto meu pai./ Foi-se-me um dia a saúde…/ Fiz-me arquiteto? Não pude!/ Sou poeta menor, perdoai!”.

A partir daí, as referências à morte na sua poesia são constantes. Na vida prática, o poeta, que viveu modestamente de traduções e do salário de professor de literatura hispano-americana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e foi um solteiro prudentíssimo, não deixou de registrar sua última vontade num testamento oficial, documento hoje no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Testamentos costumam frequentar gavetas e cofres de pessoas abastadas. Faz sentido. Exigem solenidade para a sua abertura, de modo geral, em juízo, e cercada de muita expectativa, quando não de grandes surpresas que, dependendo do tamanho, chegam a causar tragédias – assim mostram os folhetins. Há ainda o testamento que prescinde de ritual grave – uma simples folha de papel, ou mais de uma, dependendo da bonança do testador que ali expressa sua vontade na linguagem que quiser. Parece que vale também.

Não foi essa a escolha de Manuel Bandeira, que, zeloso de seu destino, optou pela versão oficial, de modo a não deixar brechas. Familiarizado com a Indesejada das Gentes, soube calcular bem o momento de sua chegada: apresentou-se ao 8o Ofício de Notas no dia 17 de outubro de 1967, data em que foi lavrado seu testamento. Morreria em 13 de outubro de 1968, apenas quatro dias antes de o documento completar um ano.

Talvez São Francisco de Assis não se recusasse a assinar o texto de Manuel Bandeira, tal a simplicidade dos itens relacionados. No Rio, suas moradias, sempre alugadas, entrariam para a história da literatura brasileira. À exceção de uma casa modesta na rua coronel Santiago, em Teresópolis, que deixou para a sua companheira, Maria de Lourdes Heitor de Souza, nada mais há de grande valor nesse documento. As imagens de Santo Antônio e de São Sebastião ficaram para as irmãs Rosalina Leão e Maria Augusta Costa Ribeiro, conhecida como Magu, que ele homenageou no poema de mesmo nome, chamando-a de “besourinho cor de havana”. Coube ao afilhado John Talbot, aquele “baby so sweet, so nice”, do poemeto “John Talbot”, e neto de Fréddy Blank, mulher que amou durante toda a sua vida de solteirão, um par de abotoaduras de prata holandesa. A Anthony Derham, o Tony, irmão de John e especialista em arte oriental, uma pequena escultura chinesa de jade. Sua biblioteca, farta em literatura hispano-americana, ficou para a Academia Brasileira de Letras.

Em cada um dos itens, um carinho elegante. Um punhado de bons amigos é lembrado nesse texto jurídico em que transparece o cuidado de dizer “muito obrigado” aos que o cercaram. O legado maior, eterno e intransferível, ele deixou a seus leitores. Aqui, não custa lembrar dos versos com que Drummond o homenageou nos seus cinquenta anos, referindo-se à sua poesia: “tua pungente, inefável poesia,/ ferindo as almas, sob a aparência balsâmica,/ queimando as almas, fogo celeste, ao visitá-las”.

A “simplicidade do requinte” a que se referiu Antonio Candido em relação à poesia bandeiriana está também presente no seu testamento. Aqui é o homem que ressalta na sua elegância franciscana.

“Bandeira foi o ser mais humanamente vertical que conheci”, me disse Homero Icaza Sánchez quando o entrevistei há muitos anos. Aluno do poeta na cadeira de literatura hispano-americana da UFRJ, Homero ficaria conhecido com El Brujo por seu trabalho no Instituto Técnico de Análises e Pesquisas (ITAPE). Era também poeta, e se converteu em amigo próximo, além de seu testamenteiro. Entre os testemunhos da verticalidade moral a que se referiu, lembro do episódio que ele me contou a respeito da aceitação do amigo diante da vida: costumavam almoçar juntos todo dia, num restaurante muito simples perto da Academia Brasileira de Letras, o SulAmericano. Por ordem médica, o poeta, que sofria de uma úlcera, não variava o cardápio: comia, com satisfação, um macarrão feito na água e sal. Nada mais.

Intrigado com a humildade com que Bandeira fazia sua refeição diária, Homero um dia lhe perguntou: “Isso é bom, Manuel?”. Ao que o amigo lhe respondeu prontamente: “É ótimo, o médico mandou…”.

Essa foi sua postura diante da vida, expressa no soneto “Renúncia”, publicado em 1917. Durante algum tempo eu o fiz de oração de cabeceira e dormia pacificada depois de dizê-lo. Começa assim: “Chora de manso e no íntimo… procura/ Curtir sem queixa o mal que te crucia:/ O mundo é sem piedade e até riria/ Da tua inconsolável amargura”.

Devo dizer que, desejando ser forte, mas, ao mesmo tempo, querendo me livrar do sofrimento, eu omitia o último terceto: “Encerra em ti tua tristeza inteira/ E pede humildemente a Deus que a faça/ Tua doce e constante companheira”.