Em 1969, ao completar cinquenta anos de idade, a pintora colombiana Emma Reyes começou a escrever cartas, que totalizariam um conjunto de 23, a seu amigo e escritor Germán Arciniegas, contando a fabulosa história de sua vida. Ainda que o destinatário as tenha mostrado a Gabriel García Márquez, cujo entusiasmo com a narrativa não foi menor que o seu, os editores demoraram tanto a perceber a qualidade dessa obra de memória epistolar que Arciniegas morreu sem vê-las publicadas em Bogotá, em 2012, sob o título Memoria por correspondencia. O livro, hoje na quinta edição, tem lançamento previsto para este mês de março de 2016 pela Companhia das Letras, com tradução de Hildegard Feist.

Criada com a irmã mais velha, Helena, nas ruas do bairro popular de San Cristóbal, em Bogotá, sem saber nome de pai ou mãe, as duas crianças tinham como única referência uma moça chamada María, que as amparava e administrava a miséria em que viviam. Digo administrava porque nem mesmo a penúria dispensava uma certa ordem que incluía, por exemplo, a função atribuída a Emma: levar o penico contendo “lo chico y lo grande, lo líquido y lo sólido” para ser esvaziado no lugar certo. O leitor se envolve de tal modo na leitura que chega a compartilhar o pavor da menina, pavor de que, no caminho, o conteúdo caia antes de chegar ao destino certo.

Um dos encantos do livro está na preservação da liberdade de imaginação infantil, ainda que as crianças vivam na miséria do submundo.  Em meio à fome, ao medo de que eram tomadas nos momentos mais agudos de desamparo, as duas irmãs, acompanhadas do Piojo, o filho da vizinha, e do Cojo, o único amigo de Emma, dão vida a irrestritas fantasias, o que nos remete ao clássico Os meninos da rua Paulo. Assim como nessa obra-prima de Ferenc Molnár, a imaginação ganha todos os contornos de realidade, o que faz com que, num dos relatos mais pungentes do livro, o leitor acompanhe a criação do general Rebollo, grande boneco de barro que as crianças constroem e que se converte no Deus deles, personagem central de todas as brincadeiras. Até o dia em que o boneco perde sua importância: “Depois de ter nos inspirado mil e uma brincadeiras, o general Rebollo começou a deixar de ser nosso herói. Nossa imaginação diminuta já não se inspirava na presença dele, e a cada dia menos crianças queriam brincar com ele”.

Foi aí que o Cojo, dando-se conta do abandono a que fora relegado o boneco, assume a liderança da situação, sobe em um caixote, dá três golpes com seu bastão improvisado e, com voz cortada pela emoção, grita: – O general Rebollo morreu. – Em lágrimas, as crianças se aproximam do boneco para velá-lo, mas o momento exige solenidade, e o Cojo, vigilante, adverte, do topo do caixote: – De joelhos!

Todos obedecem imediatamente; ajoelham-se. Segue-se, então, a cerimônia de enterro do general Rebollo, cujo grande corpo teve de ser dividido em partes para ser enterrado, cada uma delas com a gravidade que o ritual exige. Questão de dignidade: não lhe repartem a cabeça, preservada inteira. Tampouco admitem que o extenso ritual seja simplificado. Emma Reyes descreve a cena com todo o respeito, deixando que a  aventura infantil se realize sem restrições, trazendo, desse modo, o leitor para dentro da emoção das personagens.

Distante do mais remoto risco de pieguice, é com um certo humor – marcas claras da narrativa – que Emma descreve sua orfandade: quando um menino quis saber de seu pai ou mãe, a menina devolve-lhe a questão. Não sabe o que significam essas palavras e desse modo, sem querer, acaba por encorajar o garoto a lhe confidenciar o que ele tampouco sabia.

Impossível não associar a leitura de Memoria por correspondencia a um outro romance epistolar: Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil, de Ina von Binzer, que retrata tão bem os costumes brasileiros na segunda metade do século XIX. Em ambos, as cartas observam sequência cronológica e, por meio dela, exibem a evolução da personalidade e sentimentos da narradora e de seus pares, o que permite ao leitor da Correspondencia acompanhar o estranhamento que Emma sente quando, pela primeira vez na vida, aos cinco anos de idade, María a segura no colo durante uma viagem de trem de Bogotá para Guateque, para onde seguem na errância própria da indigência. O aconchego era completamente desconhecido para a menina, e ela não sabe o que fazer com a proximidade daquele outro corpo tão junto ao seu. Tem medo de que sua cabeça encoste no rosto da protetora, e finalmente pega no sono sem se dar conta do que acontece. A autora evita, assim, qualquer emoção provocada pelo toque.

A carta 9 trata de uma frustração que resulta em descrição divertidíssima. É quando, felizes por terem conseguido com dona Inês, a vizinha, uma “mazamorra”,  sopa grossa semelhante a um angu, servida numa grande panela, as crianças são surpreendidas com dois tiros disparados pelo marido de dona Inês, que era policial. As balas atingem a mulher, que cai “como uma pedra” por cima da panela e a quebra em pedaços. Dona Inês não morreu, mas nunca mais comeram a “mazamorra” – conclui Emma Reyes, privilegiando o caráter fantástico da cena.

Por um desses mistérios da boa literatura, a fatalidade da cena é descrita mais como uma mágica mal sucedida, e por isso cômica, do que como a desgraça que de fato representava para as crianças famintas. O elemento fantástico nessa obra se restringe ao universo infantil, fantasioso das pequenas Reyes e de seus poucos amigos. A ele se contrapõe a dureza das emoções represadas ou suspensas a cada momento, como na carta em que as crianças descobrem María com um filho recém-nascido no colo e fogem, desarvoradas, para se recolher perto do fogão da casa, sem entender o sentimento de que estão tomadas.

É só na carta 12, quando, deixadas na estação de trem, são recolhidas a uma espécie de Casa de Recuperação, que as meninas vão saber o que é dedicação, cuidados. Mas como nada para elas era de graça, em contrapartida tinham de enfrentar a crueldade das colegas, que as viam como as “Novas”, além do pesadíssimo cotidiano. Aqui há o belo perfil de mais uma María, dessa vez a irmã María:

Se me perguntares qual foi o primeiro amor de minha vida, tenho de confessar que foi irmã María. Era um amor estranho, como se ela fosse minha mãe, meu pai, meu irmão, meus irmãos e meu noivo. Para mim, ela reunia todos os tipos de amor e todos os matizes da ternura. Alta, muito esbelta, de movimentos ágeis e elegantes, a pele morena, olhos negros penetrantes e ao mesmo tempo um pouco tristes. Suas feições eram perfeitas, harmoniosas, mas não eram femininas nem masculinas, eu diria que não tinham sexo. Eram a beleza e o equilíbrio perfeitos, acima do sexo. Às vezes parecia um pouco dura ou masculina e outras vezes era de uma ternura e doçura extraordinárias.

Depois de viver em mais de dez países, Emma Reyes se distinguiu como pintora em Buenos Aires. Dali foi para Paris, onde não só se consagrou na sua arte como ajudou a muitos pintores colombianos, entre os quais Fernando Botero.