
Quando, aos 73 anos, Henri Matisse se mudou para a lendária casa conhecida como Villa Le Rêve, já não conseguia mais pintar. Uma série de cirurgias e doenças graves, culminando com um câncer, o havia deixado extremamente fragilizado. Os amigos e a família mal acreditavam que ele sobrevivesse ao ano de 1942, mas, no verão seguinte, o pintor deixou Nice, onde morava, para se instalar na Le Rêve, na pequena cidade de Vence, longe das ameaças de bombardeio da Segunda Guerra Mundial – e em busca de espaço e tranquilidade para convalescer e trabalhar.
Mesmo confinado à cama na maior parte do dia, nunca perdeu o vigor criativo, e nesse período trocou a pintura pelo desenho, pela escultura e, mais tarde, pelos recortes e colagens.
Grande parte de seus amigos pintores em Nice já tinha feito o caminho do campo, e é um deles, André Rouveyre, velho colega da École des Beaux-Arts, desenhista e escritor, quem descobre a Villa Le Rêve para Matisse.
Incrustada no alto de uma montanha rochosa, cercada de palmeiras centenárias e com um jardim de vegetação abundante, repleto das espécies mais variadas, Le Rêve é o lugar perfeito para Matisse, seus dois gatos, sua assistente Lydia e uma centena de objetos curiosos, como conchas do mar, vasos etruscos, jarras, cadeiras e pequenas esculturas que compõem seu universo afetivo de formas e cores.
Rouveyre também tinha se mudado havia pouco para a redondeza, e os dois amigos, que já se escreviam com regularidade, passam a trocar cartas diariamente, muitas vezes mais de uma vez ao dia, para divertimento e admiração dos funcionários do correio local, responsáveis por levar os envelopes mais lindamente desenhados da Le Rêve (“O Sonho”, em francês) para a casa de Rouveyre, cujo nome não era menos bonito: La Joye de Vivre (sic) (“A Alegria de Viver”).
- Frente e…
- …verso do envelope de Matisse
“É uma espécie de flerte (‘flerte’ – eu gostaria de ter escrito ‘fleurt’). Como se jogássemos flores um para o outro, rosas que soltam suas pétalas, e por que não?”, escreveu Matisse sobre a modelo haitiana que posou para seus desenhos da edição ilustrada de Les fleurs du mal, de Baudelaire (La Bibliothèque Française, Paris, 1947). Rouveyre foi o interlocutor do amigo para a mais variada gama de assuntos, das fofocas da cidade às mazelas da velhice, da solidão aos dilemas familiares, dos amores aos questionamentos sobre a arte. Mas, acima de tudo, foi em Rouveyre que Matisse encontrou seu melhor conselheiro para assuntos editoriais. Esboços de páginas, propostas de capas e tipografia, ideias de autores que poderiam ser ilustrados, tudo era assunto da correspondência dos dois amigos.
“Estou sem ação depois de ter flertado por tanto tempo, quase ininterruptamente, com o encantamento dessas cores”, escreveu Matisse a Rouveyre em 1943. Sua visão se deteriorava enquanto trabalhava nos recortes de Jazz, o magistral livro de recortes coloridos e exuberantes que marca o ápice de sua maturidade. Matisse encontrou inspiração nas formas sinuosas do jardim de Le Rêve e durante meses Rouveyre recebia pelo correio desenhos de filodendros, corpos que dançam na floresta, além de pétalas gigantes.
- Páginas de carta de Matisse para Rouveyre, 8 de abril de 1946
- Prancha da série Jazz (I), publicada posteriormente
- Prancha da série Jazz (II), publicada posteriormente
- Carta a Rouveyre, 13 de dezembro de 1948 (tradução abaixo)
“Não estou inspirado. Ainda assim, meu coração está com você”. Assim Matisse resume todo o afeto e a atenção nas trocas com o amigo.
As cartas escritas por Matisse entre 1941 e 1954 foram doadas por André Rouveyre à Coleção de Manuscritos da Biblioteca Real de Copenhagen, que abriga também escritos de Martin Lutero, Erasmus de Rotterdam, Karen Blixen, Hans Christian Andersen e muitos outros. As cartas escritas por Rouveyre estão sob a guarda dos Archives Matisse, em Paris.
E para os que querem ter o prazer de ver Matisse durante o ato de criação, é só assistir ao vídeo abaixo:
*Mariana Newlands é designer e curadora assistente da Coordenadoria de Fotografia do IMS.