No ano em que o músico Bob Dylan ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, espelhando o hibridismo, a indeterminação e o trânsito entre gêneros literários, a polêmica parece um tanto tola. Mas, 99 anos atrás, a ousadia de João do Rio em definir seu A correspondência de uma estação de cura como romance (entre parênteses, na capa da primeira edição) não foi bem compreendida. “São crônicas”, refutou de forma contundente o escritor Viriato Correia, lamentando não tratar-se de narrativa unificada.

Se ainda for necessário identificar gêneros, não resta dúvida: A correspondência… é um romance. O personagem principal – facilmente identificaria a crítica contemporânea – é a alta-roda da sociedade brasileira, aprisionada pela Primeira Guerra e por sua própria inutilidade em uma estação de águas cheia de esnobismos. É da cidade de Poços de Caldas de 1917, com seus hotéis, teatros e cassinos elegantes, que são remetidas as 37 cartas de “banhistas” que compõem o romance, formando um mosaico de cenas e personagens interligados, reconhecido aos poucos pelo leitor.

Difícil pensar em estrutura mais contemporânea. A escolha de João do Rio pela fragmentação das cartas pode estar relacionada apenas ao exercício de cronista que tanto o notabilizou – e que também pode tê-lo estigmatizado como escritor menor. O autor teria sido “espontâneo”, sem “uma verdadeira consciência técnica”, afirma o professor Antonio Candido em sua apresentação da terceira edição – publicada em 1992 pelo Instituto Moreira Salles, em parceria com a Fundação Casa de Rui Barbosa e a Editora Scipione.

A estrutura que causou tanto estranhamento insere a obra facilmente no contexto da literatura atual, marcada, em suas experimentações, por fragmentação, descontinuidade e polifonia de vozes. Está tudo lá, no romance epistolar de João do Rio.

Outra opção do escritor que, sob a luz da História, revela-se interessante, é a da ambientação em uma “estação de cura”. Cinco anos depois de lançar o livro, quase ignorado pela crítica, era publicado na Alemanha, por um dos gênios da literatura mundial, um clássico em que personagens endinheirados também estão confinados em uma estação de cura – no caso de “A montanha mágica”, de Thomas Mann, um sanatório para tuberculosos nos Alpes Suíços. Por coincidência, Antero Pedreira, um dos principais narradores usados por João do Rio para contar a sua história, inicia a primeira correspondência lamentando: “O desagradável é vir para Poços de Caldas imaginando Saint-Moritz”, comuna suíça onde há um balneário de águas termais.

A Europa está ainda presente de forma subterrânea no romance: nas afetações francesas dos personagens, nas comparações com o “mundo civilizado”, e principalmente no pano de fundo da guerra, que intensifica tensões e euforias. Predominam, nas cartas, frivolidades e fofocas – algumas deliciosas, que têm o poder de distrair o leitor assim como banhos, jantares, cavalgadas e jogos de azar “matam o tempo” ocioso dos endinheirados (e de oportunistas que gravitam em torno deles).

Mas eis que, em meio ao divertimento de uma vida artificial, o acaso ou a busca de alguma aventura mais exótica faz aflorar, inadvertidamente, o que está subterrâneo. Primeiro, insinua-se a tensão entre classes sociais – ricos aristocratas desprezam os ricos negociantes, ambos deixam-se seduzir por artistas e vigaristas, enquanto todos ignoram a degradação dos mais pobres. Depois, vêm à tona as mentiras, com um personagem sendo desmascarado, na carta seguinte; dona Eufrosina de Passos de Machado, por exemplo, vai sendo apresentada por comentários casuais, até que o leitor monte as peças e a imagine inerte, com o corpanzil de 136 quilos sempre à frente da roleta, depois de escrever uma carta à filha reclamando do tédio e pedindo dinheiro porque o preço dos quartos aumentara: “Desta vez ainda nem pus os olhos na roleta”.

A trama amorosa em torno de uma grande herdeira casadoira, cobiçada por caçadores de dotes, distrai a todos: banhistas/missivistas, numa primeira camada; e leitores (das cartas ou do livro?), numa segunda. As narrativas repletas de ironias e detalhes picantes, no entanto, não evitam que o subterrâneo apareça novamente. E aí, mesmo que senhoras desviem os olhos de chagas expostas ou de um homem esfaqueado, o leitor não terá a mesma facilidade de ignorá-los.

Isso porque Teodomiro Pacheco, o “parisiense”, hóspede, de início, mais irritado com a ameaça de submarinos alemães na travessia do Atlântico, resolve empreender uma espécie de pesquisa antropológica para complementar seu tratamento da neurastenia em águas sulforosas. É ele quem não só faz emergir nas cartas doenças e desgraças, como passa a desfiar observações incômodas ao seu interlocutor (um “homem de letras” do Jockey Club do Rio): “Diante daquele espetáculo, entretanto, dois sentimentos apenas floriam nos nossos belos corações: o nojo e o vago terror fatalista de que talvez viéssemos a sofrer a mesma coisa”.

O narrador/missivista escolhido por João do Rio para análises filosófico-sociológicas às vezes passa do ponto. Explicar demais aquilo que o leitor já teve o impacto de entender por muito menos é má técnica em narrativas contemporâneas. Mas Teodomiro/João pode ser perdoado em seu deslize por contar a melhor história do livro (um conto facilmente lido de forma independente): a do caboclo Joaquim. Empregado do coronel Arnaldo, Joaquim não come, nunca, há anos. Porque lhe faz mal. Desperta a curiosidade não só de Teodomiro como do “cientista” Polidoro, que pretende desmascará-lo com “pesquisas”. O desfecho é genial, e só este episódio já valeria a leitura do romance epistolar de João do Rio.

A leitura de A correspondência…, porém, vale especialmente pela observação de sua contemporaneidade – que talvez vá além da estrutura fragmentada e polifônica. Seria impressão minha, ou a temática em torno de super ricos, preconceitos e tensões sociais anda assustadoramente atual? Por essa, acho que nem João do Rio nem Viriato Correia esperavam.