“Como conseguimos viver tanto tempo sem fax”, pergunta Jorge Amado numa missiva enviada da Bahia, num 2 de fevereiro de 1994 ao “casal lindo” José Saramago e Pilar del Rio. A mensagem carrega um pedido de desculpas pelo corte na comunicação, culpa do aparelho de fax da casa de Salvador, que “pegou fogo e botou fumação” impedindo que Jorge e Zélia Gattai – quem cunhou o elogio aos amigos – mandassem notícias.

A resposta, enviada da ilha espanhola de Lanzarote, nas Canárias, veio logo no dia seguinte, também por meio de fax: “Zélia devia estar aqui para ver o sorriso de Pilar quando leu o  ‘casal lindo’ – da expressão da minha cara, melhor é não falar. Zélia disse muitas coisas bonitas na vida (além das que escreve), mas poucas terão feito tão felizes as pessoas a quem se dirigiam. Por isso e por tudo, beijo-lhe, à moda antiga, as mãos”, escreve o futuro Prêmio Nobel de Literatura.

É esse tom de cumplicidade e informalidade que permeia a correspondência que Jorge Amado e José Saramago intercambiaram entre 1992 e 1998, publicada  recentemente pela Companhia das Letras. Com o mar por meio – uma amizade em cartas inclui fac-símiles, cartas, cartões e fotografias pessoais de uma relação “nascida tarde, mas que, em lealdade e generosidade, pede meças à melhor que por aí se encontre”, define o escritor luso numa das mensagens ao amigo.

Amado e Saramago se conheceram em 1990, em Roma, quando foram jurados do prêmio União Latina. O tardio encontro poderia ter-se dado quase uma década antes não fosse a timidez do português. Num texto que escreveu quando da morte do amigo (e que integra o livro da cartas) Saramago conta que num dia de 1981 ia caminhando por uma das avenidas de Lisboa quando avistou Jorge Amado, que ia cercado por um grupo de conhecidos. Num ato reflexo, atravessou rapidamente para o outro passeio, tentando passar-se despercebido. Mas foi seguido por uma das pessoas, que sugeriu que voltasse para ser apresentado ao autor baiano. “Respondi que não valia a pena, que não queria interromper a conversa, incomodar, ficaria para uma outra vez.” No primeiro encontro em Roma conversaram pouco, mas no ano seguinte, na mesma cidade e pelo mesmo motivo, deram início à relação de carinho e  admiração que proporcionaria encontros em Paris, Santiago de Compostela, Lisboa e Salvador.

O afeto entre eles e a vontade de encontrarem-se dita o tom do intercâmbio epistolar.  “Desta ilha de Lanzarote, com o mar por meio, mas com braços tão longos que alcançam a Bahia, […] enviamos muito saudar e votos valentes contra as coisas negativas da vida”, assinam José e Pilar no Natal de 1994. Uns meses depois o casal luso-espanhol informa que a planejada visita ao Brasil fora cancelada. “Pena que vossa viagem para São Paulo tenha sido suspensa. Já estávamos enfeitando de alegria a casa do Rio Vermelho para vos receber”, contestam os baianos. Em fevereiro de 1996, finalmente, o par europeu visita a famosa Casa do Rio Vermelho, com direito a participarem das festividades pelo Dia de Iemanjá (2 de fevereiro) e desfrutarem da comida de Dona Canô, mãe de Caetano Veloso.

De regresso à Espanha, escrevem: “Queríamos agradecer-vos, uma vez mais, tudo quanto de belo e de bom recebemos do vosso carinho durante esses inesquecíveis dias brasileiros. Queríamos dizer-vos, também, que desejamos que haja mais ocasiões para estarmos juntos e partilhar do manjar supremo que é a amizade.” A saúde de Amado não permitiu que isso acontecesse, a visita a Lanzarote nunca foi possível.

Além de saudade, outra palavra que aparece com frequência na correspondência entre os literatos é prêmio. Conversam tanto sobre o assunto que chegam a estabelecer um pacto: quem recebesse o Nobel levaria o outro à cerimônia na Suécia. “Estaremos na Bahia até março, a não ser que tenhamos que acompanhar o casal a Estocolmo. “Aliás, por falar em Estocolmo, um telefonema de Nova York ontem me fez saber que o próximo prêmio Nobel será o escritor português Lobo Antunes. Apesar da afirmação ser categórica, tenho dúvidas – aposto noutro romancista, também português”, escreve o baiano no dia 21 de setembro de 1994, antes de despedir-se com “beijos de Zélia” e “saudades do leitor e amigo, Jorge Amado”.

Dias depois vem a resposta, onde se lê: “Quanto ao Nobel, como dizia o outro, seja o que Deus quiser […] não há dúvida de que esse prêmio é uma invenção diabólica.” A conversa segue: “Salvador, 13 de outubro de 1994. Queridos Pilar e José, ainda não será desta vez que iremos, os quatro, a Estocolmo festejar o Nobel de José: um japonês nos atropelou”, anota o baiano no dia em que o nome de Kenzaburo Oe foi anunciado pela Academia Sueca. Num ps cheio de humor, o autor de Tocaia grande arremata: “Para dizer toda a verdade, devo convir que os 950 mil dólares do Nobel cairiam muito bem no bolso de um romancista português ou brasileiro, pobre de marré, marré”. A 3 de abril de 1995, da ilha espanhola chegam os parabéns pela atribuição do Prêmio Camões ao criador de Gabriela. “Queridos Jorge, querida Zélia, finalmente o Camões para quem tão esplendidamente tem servido a língua dele. Será preciso dizer que nesta casa se sentiu como coisa nossa esse prêmio?”.

Em outubro de 1997, de Lanzarote, escreve-se: “Querido Jorge, não há nada a fazer, eles não gostam de nós, não gostam da língua portuguesa (que deve parecer-lhes sueca…), não gostam das literaturas que em português se pensam, sentem e escrevem. Não têm metro que chegue para medir a estatura de um escritor chamado Jorge Amado. […] Enfim, vamos vivendo e trabalhando. Isso é que conta. O mais é Academia Sueca… Para ti e para Zélia, todo nosso carinho. José”.

Depois dessa mensagem, silêncio. Praticamente cego, Jorge Amado já não escrevia nem lia, e a tristeza por essa condição o deixava sem vontade de falar com ninguém. Em 1998 saiu do mutismo por um dia. Ao saber que José Saramago tinha finalmente recebido o esperado galardão, ditou à filha Paloma Amado (uma das organizadoras do livro agora publicado) a derradeira carta ao amigo: ”Viva Saramago!!!! Zélia, Paloma e eu estamos aqui brindando a vossa-nossa-felicidade, com este prêmio tão merecido. Ditei a nota acima [distribuída aos meios de comunicação, onde diz que o prêmio fazia justiça à Língua Portuguesa], pois não estou podendo escrever nem dar entrevistas, mas não poderia deixar de dizer a todos o quanto estamos felizes por esta vitória, pessoal e da literatura em língua portuguesa. Todo o afeto do Jorge Amado”.

** Assim como no livro, foi mantida, nas citações  neste texto, a grafia original das cartas.