Difícil imaginar a devoção de Glauber Rocha por Eisenstein sem que, certa manhã, tivesse sido expulso do Cine Liceu depois de tagarelar durante uma aula do crítico Walter da Silveira sobre O Encouraçado Potemkin. O garoto, sempre comparado pelo mestre a Castro Alves, a imagem da genialidade em flor, abandonou o deboche e caiu de amor febril pelo cineasta soviético, uma admiração mantida e radicalizada nas décadas seguintes. Essencial para o interesse de Glauber pelo cinema político, Walter pertence à geração de intelectuais amadurecidos no antifascismo e nas agitações do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em Salvador, ele evitou pagar tributos a chapéus e echarpes de tremeluzentes estrelas de Hollywood e introduziu a crítica cinematográfica onde havia confetes. Mais que isso, mudou de assunto: iluminou o cinema europeu do pós-guerra. No final dos anos 50, virou o farol teórico dos cineastas da província, deixando de lado as papeladas de advogado trabalhista para liderar as sessões do Clube de Cinema da Bahia.

No cineclube, Glauber e Walter selaram uma aliança política para além da amizade. E uma relação quase sanguínea para além da aliança política, com projeções frequentes de “pai” e “filho”. As cartas trocadas pelos amigos revelam nuances pessoais de um diálogo relevante na terraplanagem prévia do cinema novo. Em 19 de abril de 1962[1], escrevendo do Rio de Janeiro, Glauber tentou desfazer um mal-entendido: “Surpreendentemente, quando cheguei à última sessão de um domingo, no Festival Francês, amigos me disseram que o senhor houvera falado contra mim, por motivos que me pareceram inexplicáveis – e como conheço bem o seu temperamento e o meu – e como devo ao senhor um respeito que só devo aos meus pais – achei de melhor política não me dirigir ao senhor – a não ser quando cheguei à sala e o (sic) saudei com absoluta ingenuidade a sua posição”.

“Francamente, não acredito como uma crônica em jornal viesse a feri-lo. Eu não o incluo entre os meus amigos baianos – mas sim entre as pessoas (poucas) a quem devo um compromisso muito maior do que simples e às vezes íntimas relações. No cinema – que é minha órbita sócio-existencial – eu tenho pelo senhor, por Alex e Paulo Emílio uma forte admiração, porque reconheço na minha formação uma influência poderosa de todos os três. (…) Eu sempre tive dúvidas absurdas sobre as pessoas que me cercam, nunca as tive a seu respeito”, confessou o cineasta.

Foto: Glauber Rocha e Walter da Silveira, em 1962, na Tchecoslováquia: prêmio Opera Prima para “Barravento”. (“Glauber Rocha: esse vulcão”, João Carlos Teixeira Gomes, Ed. Nova Fronteira, 1997.)

Glauber fixou reiteradas vezes a trindade crítica que influenciou o cinema novo. Além de Walter, lhe pareceram centrais as intervenções do carioca Alex Viany e do paulista Paulo Emílio Sales Gomes. Em 1981, no livro Revolução do Cinema Novo, ele chamou Walter de “pedra angular de nossa teoria cultural”, ao lado de Viany e Paulo Emílio, e agente de “uma aliança política”. Atraído pelo fenômeno cinematográfico da Bahia, Paulo Emílio identificou uma “dialética harmoniosa e vivificante” ao visitar Salvador, em 1962: “Quando um brasileiro do Sul procura refletir os acontecimentos baianos em matéria de cinema dois nomes emergem espontaneamente: Walter da Silveira e Glauber Rocha”. Essa dialética-chave impactou a crítica, a produção e a direção de filmes.

Numa carta a Glauber, em 6 de janeiro de 1964, Walter reforçou a sua admiração pelo amigo, então fixado no Rio, e abriu-se em afetos incomuns em suas exposições públicas. “Procure lembrar-se de vários fatos que comprovam como seguidamente o olhei tal se olhasse um filho mais velho. Daí que também vinham desencantos com atitudes suas. Você frequentemente procedia como se eu não fosse o amigo que sou. E isto – temperamental que sou – me doía. Era, digamos, um filho a afastar-se do pai”, queixou-se Walter, com frequência envolvido por sentimentos de isolamento cultural na Bahia. “Não que eu tenha a pretensão de ser seu mestre, de tê-lo como um discípulo. Longe disto. Há pais e filhos que vivem em plano de amizade fraternal (por paradoxo que pareça), que não se olham de cima para baixo, ou ao contrário”.

A analogia com a figura paterna ressurgiu no obituário do crítico baiano assinado por Glauber, em novembro de 1970: “Olha aqui, dr. Walter: Adamastor é o nome de meu pai (…) Se eu tive outro pai, foi você, velho Walter. Você me dizia ‘não me chame de doutor nem de senhor’ (…) Você, Walter, era meu pai doutor”. Dedicado ao mestre, o curta Pátio, de 1959, não despertou a condescendência do crítico, perturbado pelo “retardado surrealismo ingênuo” do diretor estreante – em sua opinião, sob influência de Jean Cocteau e Maya Deren. O pai metafórico recusaria ainda a benevolência automática com o cinema novo.

Em 1960, ele definira os textos de Glauber como “injustos quase sempre, continuadamente sinceros, porém”. Influenciado por André Bazin, em estética, e Georges Sadoul, na vertente historiográfica, Walter reconheceu no realismo cinematográfico o potencial de desvelar a sociedade brasileira, fascinado, como outros críticos de sua geração, pelos neorrealistas italianos. Na Segunda Guerra, ele se fez pioneiro no artigo “Esta é a hora do cinema nacional” (O Imparcial, 1943), uma rara defesa das potencialidades do cinema brasileiro, em que reivindicava que Getúlio Vargas estendesse ao setor a política industrial de substituição de importações.

Se reconhecia a ascendência de Walter, o “filho” não renunciava ao direito da divergência. Aliavam-se na defesa de um modelo econômico emancipador da produção cinematográfica e na representação sem caricaturas da realidade brasileira. Na militância do “cinema de autor”, o cineasta se chocou com o ceticismo de Walter em relação à teoria em voga. O filme Bahia de Todos os Santos (1960), de Trigueirinho Neto, demarcou a autonomia crítica de Glauber, defensor  apaixonado da obra “autoral” rejeitada asperamente por Walter. A polêmica foi travada nas páginas do jornal “Diário de Notícias”.

No ensaísmo de Walter, podemos saber como a filmografia de Glauber foi observada por seu primeiro mentor. Ele acolheu com reservas Barravento, de 1962, e recebeu com entusiasmo Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964, Terra em Transe, de 1967, e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de 1969. De desavenças numerosas, oscilando entre a peleja e o comício, Glauber jamais rompeu a amizade com Walter, a quem confiava todos os seus roteiros. Doados pela família à ABI (Associação Bahiana de Imprensa), os arquivos do crítico estão bem cuidados e abertos à consulta. Entre os papéis de Walter, há uma comovente recorrência de recortes de revistas internacionais sobre seu mais célebre “filho”. Não acabou mal aquela expulsão do Cine Liceu.


[1] A correspondência de Glauber e Walter pode ser conferida nos livros Cartas ao Mundo (Companhia das Letras, org. Ivana Bentes), O Eterno e o Efêmero (Ed. Oiti, org. José Umberto Dias) e Walter da Silveira e o Cinema Moderno no Brasil (Edufba, org. Cynthia Nogueira).