Na noite de 26 de abril de 1916, Mário de Sá-Carneiro vestiu um smoking, ingeriu cinco frascos de estricnina, e deitou-se na cama do seu quarto no Hotel Nice, em Paris, à espera daquela que parece ter sido sua obsessão durante boa parte da vida: a morte. Duas semanas antes escrevera uma carta ao amigo Fernando Pessoa dizendo que “já dera o que tinha a dar” e que cometeria o suicídio por ter-se colocado “numa situação sem saída”. Tinha 25 anos.

Não fazia um ano que chegara pela terceira vez a Paris. Naquela altura, o aparecimento da revista Orpheu era o assunto entre os intelectuais e artistas em Portugal, e os grandes responsáveis daquele terremoto eram Pessoa e Sá-Carneiro.

A repentina partida deste pegou a todos de surpresa – é possível que conflitos familiares tenham motivado a fuga do autor de A confissão de Lúcio. Mas a amizade entre os criadores da publicação que introduziu o modernismo em Portugal não sofreu abalos. A troca de correspondência entre ambos durante 1915 e 1916 foi intensa e íntima. No espólio de Fernando Pessoa foram encontradas mais de duzentas cartas e postais de Mário de Sá-Carneiro, boa parte escrita durante a derradeira temporada parisiense.

Quando se matou, Sá-Carneiro deixou uma considerável dívida no hotel, o que levou o gerente do estabelecimento a reter os seus bens. Entre eles, talvez mais de uma centena de cartas enviadas por Fernando Pessoa. Não consta que alguém tenha pago a dívida e recuperado os pertences – em 1928, o pai do poeta passou pelo hotel em busca das coisas do filho e o que encontrou foi apenas uma mala com roupas velhas. Desconhece-se o paradeiro das mensagens, que são uma espécie de santo graal da literatura portuguesa. No espólio de Pessoa, depositado na Biblioteca Nacional de Portugal, há apenas duas cartas (em realidade, duas cópias que o remetente fez antes de enviar o original) endereçadas a Sá-Carneiro, e um rascunho.

Inconformado com a ideia de jamais ver essas mensagens, Pedro Eiras resolveu escrevê-las. Em Cartas reencontradas: de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro (Assírio e Alvim, 2016), o escritor e professor de literatura decide reconstruir as missivas. Como um arqueólogo que a partir de fragmentos de um objeto o recria, Eiras reconstrói os diálogos entre os dois amigos a partir das mensagens de Sá-Carneiro. No prólogo do livro, “explica” como encontrou em Paris o calhamaço das cartas perdidas. Uma licença poética para dar vida àquilo que, ao que tudo indica, já não existe.

Além de partir das cartas de Sá-Carneiro para ficcionalizar as possíveis mensagens de Pessoa, Eiras se nutriu de outros materiais. Foi atrás do que o escritor estava lendo e escrevendo (o Livro do Desassossego, por exemplo) na época, das preocupações que podia ter, das notas em seus diários, das notícias que o jornal dava e que poderiam interessar a ambos.

Profundo conhecedor da obra de Pessoa, Eiras se lança no desafio de colocar-se na pele do autor de “Tabacaria” e dialogar com o amigo em Paris. “Tive que preencher alguns espaços misteriosos, que estão em branco e provavelmente vão estar sempre, mas muita matéria vem do lado do Sá-Carneiro. Quando ele faz uma pergunta ao Pessoa, procuro responder-lhe. Do mesmo modo, se nas cartas de Sá-Carneiro encontro uma resposta, tenho que fazer a pergunta primeiro”, explicou Eiras numa entrevista ao Jornal de Letras à propósito da publicação do livro.

O fim da revista por falta de dinheiro (“Recebi a sua triste carta de 13, anunciado o fim de Orpheu”), a produção literária de ambos (“Magnífico o seu soneto. Mas o que você escreve perturba-me agora mais do que nunca”), a partilha de preocupações (“Meu querido Sá-Carneiro: Por que duvida você da sua obra?”), as incertezas sobre o futuro (“Verei o seu horóscopo, conforme você pediu”), são os principais assuntos das cartas e postais que Eiras assina em nome de Fernando Pessoa.

O ápice do livro são os últimos meses de vida de Sá-Carneiro, que a partir de março de 1915 já anuncia a própria morte: “A menos dum milagre na próxima 2ª feira (ou mesmo na véspera) o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas ‘cartas de despedida’”, lê-se numa das correspondências que integram o espólio de Fernando Pessoa.

Se não há resposta para essa angustiante missiva, Eiras atreveu-se a criá-la. O “seu” Pessoa anota: “Meu querido Sá-Carneiro: estou muitíssimo, muitíssimo apreensivo por sua causa. Recebi hoje, juntamente, a sua carta de 31 de março, anunciando o seu suicídio para anteontem, e o seu telegrama de ontem, dizendo bien. Compreendo que o telegrama se destina a invalidar o anúncio da carta, e sossega-me tê-lo recebido ao mesmo tempo (você sabe a aflição que me daria receber a carta apenas?). Mas eu ignoro tudo […]. Escreva-me. A sua angústia passa-se como um dia de tempestades”.

No dia 26 de abril, ainda sem saber da morte do amigo, Fernando Pessoa começou a lhe rascunhar uma carta, que deixou inacabada. A notícia do suicídio chegaria no dia seguinte. Eiras encerra o seu livro com essa derradeira missiva, mas a completa. Acrescenta um postal, datado de 27 de abril e escrito horas antes de, na sua ficção, Pessoa ser informado do suicídio em Paris. “Mesmo os meus poemas, e a doutrina do mestre Caeiro, mesmo o ocultismo e o conhecimento dos arcanos, tudo isso apenas serve para esconder de mim mesmo, com ruído e furor, esta única verdade: eu ignoro tudo. E nem sei o que o amanhã me trará. Receba o abraço muito amigo do seu Fernando Pessôa”, lê-se.

Em novembro de 1935, no hospital, um dia antes da morte, o criador dos múltiplos heterônimos agarrou numa caneta e anotou num papel: I know not what tomorrow will bring. Para Eiras, essa sentença misteriosa foi escrita pela primeira vez em português, duas décadas antes, e dirigida a alguém que já não estava.