Nem mesmo quem privou da intimidade de Nise da Silveira podia imaginar a extensão de seu talento na arte de seduzir. Mas podia desconfiar do fascínio que ela, com muita naturalidade, exercia sobre homens e mulheres, curvados à sua inteligência e graça.

O acadêmico Marco Lucchesi, que no início da década de 1990 era poeta e professor da UFRJ, não ficou imune ao charme da quase nonagenária psiquiatra brasileira, a Doutora, como a chamávamos. Certamente terá se encantado quando, ao lhe enviar um cartão com o desenho de uma locomotiva carregada de flores, recebeu, em resposta, um bilhete gostosamente dramático, em que se lê:

Marco dilettissimo, o trem veloz chegou carregado das mais belas rosas do
mundo. Mas você não veio.
Se isso acontecer outra vez, estendo-me sobre os trilhos.
Beijos
Nise

Na maioria das vezes, ela o chamava dilettissimo, como no italiano. Às vezes escrevia: Marco diletttttttttttissimo. E se despedia com “Adesso e sempre”, “Constante afeto” ou “Bacione”.

A relação dos dois, epistolar no início e hoje publicada em Viagem a Florença, tornou-se mais próxima depois que ela, num dos bilhetes, lançou a proposta: “E por que nós também não nos encontraremos?”.

Marco hesitou. Certamente apreendia a emoção do encontro, causa do adiamento sucessivo na marcação da data. O convite levaria ainda algum tempo para ser atendido, até que finalmente surgiu, nervoso, à porta da casa da Doutora, o rapazinho erudito, que mal entrara na década dos trinta, grande conhecedor de cultura italiana. Lucchesi nem sonhava em ser imortal, o que aconteceria em 2011, quando assumiu a cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras.

A afinidade, que já se comprovara em cartas curtas, intensificou-se com as visitas que ele passou a fazer à casa da amiga. Cantava árias inteiras, e ela o acompanhava com emoção e leveza. Dividiam o mesmo senso de humor: numa das conversas, ela ouviu e achou divertidíssima a palavra italiana inconsapevole (“que não tem plena consciência de algo”). Passou a empregá-la para traduzir qualquer coisa de extraordinário, de espantoso. Ou a usava de maneira aleatória, o que resultava em risos. Pronunciava-a devagar, escandindo as sílabas, achava o vocábulo gostoso. Lucchesi a compreendeu. Riam juntos da mesma coisa. Além do humor, compartilhavam a paixão pelos animais. Gatos, em especial, mas, sobretudo, entravam em grandes, enormes fantasias: “Venha no cavalinho azul”, apelava a austera Nise da Silveira, incentivando o amigo a vir à sua casa montado no cavalo desenhado por um dos clientes do Museu de Imagens do Inconsciente.

De outro modo, planejaram uma viagem a Florença. Viagem poética, imaginária, em que a cadeira de rodas a que ela era presa ficava esquecida e não os impedia de seguir roteiros discutidos na correspondência reunida em Viagem a Florença.

Em maio de 1994, quando Marco perdeu a mãe, Nise da Silveira soube se fazer presente: “Quero respeitar seu silêncio, mas ao mesmo tempo desejo de todo o coração que você saiba que estou sempre pensando em você, bem perto de você, no ar, nas nuvens”.

Valente e de sensibilidade refinada, Nise da Silveira desconhecia a vulgaridade, mesmo no cotidiano. Um ano antes de se tornar nonagenária, ainda era sedutora, sem que para isso alterasse o modo de se vestir ou de se pentear. Não pretendia parecer mais jovem. Sotaque alagoano no tom de voz firme, cabelos brancos e finos presos num coque despretensioso, vestia-se de cores claras, em geral estampas de flores pequenas em tecidos baratos. Perfumava-se discretamente de Anaïs Anaïs, da Cacharel.

Inteligência e graça eram os atributos que lhe restituíam uma sensualidade especialíssima, tão bem expressa por Di Cavalcanti no retrato que fez dela. Imagino-a agora rindo dessa observação que faço. E, ao mesmo tempo, duvido que não soubesse o quanto deixou zonzos alguns homens que a cercaram.

Foi assim durante uma apresentação informal que, certa vez, Marco Lucchesi, ao piano, fez na Casa das Palmeiras. Sentados lado a lado, Lucchesi tocava para ela, que o ouvia encantada. Formavam um par, e pareciam únicos naquela sala. Os anos que os distanciavam sumiram durante a audição. Procurei identificar um traço que evidenciasse os 89 anos da Doutora. Não consegui. O que eu via era um casal jovem, em estado de alumbramento, para usar expressão cara a Manuel Bandeira. A cena, que eu observava a uns cinco metros de distância, me deixou confusa. Idade? Que idade que nada, não houve cabelos brancos nem mesmo cadeira de rodas que a tornasse menos atraente.

Naquele momento, me veio à lembrança a novela “História de Lélio e Lina”, de Guimarães Rosa, que trata do encanto entre uma velhinha e um moço. Tudo se passa em tal atmosfera de fluidez e bruma que não se consegue identificar o comum, o trivial. É superior, e numa cena em que a senhora dança com o mocinho, o autor a apresenta desse modo: “A velhinha se asia tão delicada, senhora de serenim, em giro baile, leve espécie de criança, que sabia ser e sorrir e olhar, sem estorvo nenhum”.

Nise da Silveira mantinha o charme até mesmo quando a visitei, no hospital, dias antes de sua morte. A enfermeira lhe prendera o cabelo no alto da cabeça com uma tirinha de gaze, o que lhe conferiu impressionante juventude. Quanta força interior. Nada mais que um penteado improvisado com um pedaço de gaze, e ela se enchia de graça, aos 94 anos, sentada ao lado da cama. Começava a fazer amizade com a morte, que a levou em 30 de outubro de 1999.