Em dezembro de 2013, no bairro londrino de Notting Hill, ocorreu o primeiro Letters Live, que levou artistas do porte de Matt Berry, Benedict Cumberbatch, Thandie Newton e Juliet Stevenson ao palco do The Tabernacle para ler, ao vivo, cartas extraordinárias. Criado pela editora independente Canongate, o evento, que de 4 a 8 de outubro de 2016 será no Freemasons’ Hall, em Londres, não só celebra “o poder duradouro da correspondência literária”, como afirmam seus organizadores, mas também arrecada fundos para instituições – The Reading Agency, First Story, The Ministry of Stories, 826LA – que incentivam o prazer da leitura e da escrita.

O sucesso do evento estimulou edições fora da Inglaterra, como a que ocorreu esse ano na cidade francesa de Calais, onde se estabeleceu um dos maiores acampamentos de imigrantes da Europa. A “Selva”, assim ficou conhecido, abrigava até o final de fevereiro cerca de quatro mil refugiados vindos de Síria, Afeganistão, Eritreia, Marrocos e outros países africanos e asiáticos. Entre os diversos escritores e jornalistas que escreveram sobre a complexa relação entre franceses e imigrantes nessa cidade, está o francês Emmanuel Carrère, autor do ensaio “Em Calais”, publicado na revista serrote #23.

No dia 21 de fevereiro, poucos dias antes do início da demolição de parte do acampamento – ação repudiada por organizações como a Charity Help Refugiees – o Letters Live reuniu artistas e celebridades britânicas, dentre elas o dramaturgo Tom Stoppard e o ator Jude Law, com o objetivo de apoiar a causa dos imigrantes. O ator britânico leu para cerca de duzentas pessoas no Teatro Boa Chance (Good Chance Theatre), dentro da Selva, uma carta escrita em 1935 pelo autor alemão e judeu Lion Feuchtwanger.

Enquanto o escritor dava palestras pelos EUA, em janeiro de 1933, Adolf Hitler assumiu o poder na Alemanha. Voltar para o país natal passou a ser impossível, e ele e sua mulher, Marta, fixaram residência na França. Dois anos mais tarde, Feuchtwanger escreveu ao novo proprietário de sua casa uma carta, depois publicada no Pariser Tageblatt, jornal feito por e para os inúmeros alemães exilados após a ascensão do Partido Nazista. O casal nunca retornaria à casa de origem, saqueada pela polícia alemã. Eles viveram seus últimos anos na Califórnia, Estados Unidos.

Leia abaixo a tradução:

[…]

O que você acha da minha casa, Sr. X? Você acha agradável viver nela? O carpete platinado nos quartos superiores foi danificado durante o saque dos homens da SA? O vermelho é uma cor forte, difícil de limpar. […]

Gostaria de saber qual foi o uso que você deu para as duas salas que continham anteriormente a minha biblioteca. Foi-me dito, Sr. X, que os livros não são muito populares no Reich. […] Caso você decida arrancá-los, tenha cuidado para não danificar a parede. […]

Não deixe minha casa ficar uma bagunça, Sr. X. Construí-la e mobiliá-la deu muito trabalho a mim e à Sra. Feuchtwanger. Administrá-la e mantê-la não vai exigir muito esforço. Por favor, cuide um pouco dela. Eu também estou dizendo isso para o seu próprio interesse. O seu “Führer” prometeu que seu governo vai durar mil anos: assim eu suponho que você logo estará em posição de negociar a devolução da casa comigo.

Com muitos bons desejos para a nossa casa,

Lion Feuchtwanger

[…]

A carta pode ser lida, na íntegra, em inglês, aqui.