Quando se pensa na correspondência de Mário de Andrade, mesmo os não dedicados ao estudo dela têm a noção de sua expressividade, tanto em importância para a cultura e literatura brasileiras quanto em dimensão numérica.
Em uma de suas primeiras cartas a Carlos Drummond de Andrade, de 10 de novembro de 1924, o poeta de Pauliceia desvairada garante a resposta aos seus correspondentes: “Em todo caso de mim não desespere nunca. Eu respondo sempre aos amigos. Às vezes demoro um pouco, mas nunca por desleixo ou esquecimento. As solicitações da vida é que são muitas […]”. O “correspondente contumaz” não só respondia, como se dedicava integralmente a sua escrita, se expandia, se desdobrava, se derramava nas palavras deitadas em folhas e folhas de papel: “Desculpe esta longuidão de carta. Eu sofro de gigantismo epistolar”.
Por isso, são frequentes as missivas com mais de uma folha, como se a conversa não fosse ter mais fim. “Ao sol / Carta é farol”, escreve ele ao amigo e poeta Guilherme de Almeida. Havia sempre algo a esclarecer, destrinchar, trazer à tona, ainda que não fosse solicitado ou já estivesse, aparentemente, esclarecido.
Diante disso, causa estranheza a extensa lacuna existente na correspondência com Carlos Lacerda, um dos personagens mais controversos da política e cultura nacionais. O diálogo entre os dois foi iniciado em 1933, quando o jovem Lacerda convida o consagrado escritor para responder a uma enquete sobre os livros fundamentais da literatura brasileira, a ser publicada na revista Rumo, e vai até 1945, ano da morte de Mário de Andrade. Os manuscritos originais das cartas enviadas por Lacerda encontram-se no acervo do escritor paulista, no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), onde desenvolvo o projeto de pós-doutorado “Entre letras e lutas: edição de texto fidedigno e anotada da correspondência de Mário de Andrade e Carlos Lacerda”, subvencionado pela FAPESP. Quanto às cartas enviadas por Mário, a maioria se perdeu, principalmente devido a uma perseguição policial sofrida pelo jornalista fluminense nos anos de 1930. Restaram apenas seis cartas: três delas mantidas pelo Fundo Carlos Lacerda, da Universidade de Brasília (UnB); uma posta a lume pelo próprio jornalista na edição nº 68 da Revista Acadêmica, em julho de 1947, depois reunida em outras publicações; e duas, dirigidas a Lacerda mas nunca enviadas, localizadas no Fundo Mário de Andrade, no Arquivo do IEB-USP. E é sobre estas duas cartas que irei comentar. Afinal, o que terá feito o autor de Macunaíma desistir de mandar as mensagens a esse interlocutor?
As cartas a que me refiro são de 28 de maio e de 26 de junho de 1942. Não há uma razão muito convincente para o não envio da última, que trata, essencialmente, do nascimento do segundo filho de Carlos Lacerda, o futuro editor Sebastião Lacerda. O remetente faz comentário sobre a preferência pela natividade de meninas a meninos em tempos de guerra, ensejando uma interessante discussão sobre questões de gênero que ainda não foi encarada mais atentamente pelos estudos do modernismo brasileiro:
A vida pra mulher foi sempre mais difícil, mas nos momentos de agora a vida do homem se tornou mais difícil. Carne pra canhão, gestapos e sobretudo a interrogação dolorosíssima “E agora, o que fazer?” como no livro do Batini. A mulher, pelo menos, está com os gestos mais livres e vem atrás. Quase sempre, vem atrás….
A carta anterior, entretanto, revela condições que podem ajudar a entender a decisão do missivista de não encerrá-la em um envelope, apesar de garantir, no final, que iria enviá-la “sem pensar”. É preciso, antes, entender a motivação da carta, dar um passo atrás.
Na edição nº 60 da Revista Acadêmica, de maio de 1942, Carlos Lacerda assina o artigo “Sinceridade e poesia: Waldo Frank, Orson Welles, o pan-americanismo, a BBC, a guerra e a paz”, em que analisa a poesia de Mário de Andrade. O texto é iniciado com o relato da transmissão de um programa radiofônico da BBC em que foram lidos, por Patricia Campos, os “Dois poemas acreanos”, de Mário de Andrade, servindo de ponto de partida para uma reflexão em torno do lugar do intelectual “neste tempo de agonia”. Embora o ouvinte esperasse escutar notícias do Velho Mundo e não poesia brasileira, para ele, “[m]elhores são os poemas, no entanto, que as palavras de transigência com os pequenos fascismos à lusa, a Franco, na boca daqueles que combatem os grandes fascismos numa luta mortal”.
No instante em que a leitura foi anunciada, Lacerda estava com as Poesias de Mário em suas mãos. Mesmo sendo um leitor e apreciador dos versos do poeta paulista, não era, insiste, aquilo que queria ouvir no momento: “Não, não era aquilo, aquelas poesias e sobretudo aquelas supressões, o que eu esperava de Londres. O que eu quero não é uma exigência minha, e sim de todos os que não odeiam apenas o hitlerismo, mas tudo o que o gerou”.
Os conceitos de “sinceridade” e “verdade” que atravessam a crítica escrita por Lacerda se referem a um empenho crítico de desvelamento e, consequentemente, posicionamento diante de uma realidade que se esboroa sob os pés e sobre as cabeças, tal como experienciamos nos dias atuais. Em sua análise, o poeta Mário de Andrade faz uma “renegação de si mesmo”. Sua poesia e posição como intelectual público não coadunam com a sociedade. Apesar de destacar a permanência do sentimento e da força do autor dos versos de “O poeta come amendoim”, não deixa de apontar para o “homem que sabemos tão contraditório em suas hesitações diante dos compromissos sociais, das convenções da amizade e até de uma safadeza feita de timidez e de resíduos ‘não-me-importista’, mas nem por isso menos humana”.
A crítica escrita por Carlos Lacerda provocou grande entusiasmo em Mário pela potência do texto, mas também mágoa profunda pela forma como as coisas foram postas, num momento em que o escritor paulista passava por questionamentos e dores. Chegara do Rio havia pouco, depois de proferir a conferência “O movimento modernista”, em 30 de abril, uma das análises mais importantes já feitas sobre o assunto.
Assim, sob o impacto da leitura, do artigo de Lacerda, em 29 de maio de 1942 Mário escreve a Murilo Miranda. Embora não concorde “com ele [Lacerda] nessa atitude de seccionar assim com preto e branco” a sua poesia do resto de sua obra, Mário manifesta sua comoção ao ler o texto, que é “de uma beleza de estilo, de uma força de paixão humana, de um eloquência verdadeira intensíssima, nada oratória, verdadeira, convincente”.
Não foi só a Murilo que Mário demonstrou gosto pelo artigo de Lacerda. Ao responder a carta que não enviaria, desdobra-se em elogios, reconhecendo a crítica como “uma das páginas mais belas, mais intensas, mais dramaticamente humanas” que o jornalista já escrevera. Contudo, Mário insiste nas injustiças e crueldades do articulista com a interpretação de alguns de seus versos. Ainda assim, consegue encontrar justificativas e contrapesos para as dissensões crítico-analíticas das leituras de Lacerda acerca de seus poemas. Não admite, porém, a insistência nas “safadezas”, “indecisões” e “puerilidades” que Lacerda diz identificar nele: “Aí é que eu me separo de você”.
A tensão entre os dois não era novidade. Desde os anos 1930, Carlos Lacerda provocava Mário a respeito de sua posição político-ideológica, como na carta de 18 de setembro de 1934: “Tenha paciência, meta-se isso na cabeça: você anda nos últimos dias da neutralidade. A neutralidade está agonizantezinha. Se não se escolhe agora, ter-se-á de escolher depois, em piores condições, e já com todo esse tempo de perdido”.
Na crítica publicada quase oito anos depois, ele não apenas retoma a importância dessa confluência entre estética e política, mas reitera, da maneira incisiva de sempre, o quanto o poeta Mário de Andrade tinha distanciados esses polos em sua produção. Porém, Mário não se conforma em ser acusado de “safadezas”. A repetição desta palavra ao longo da carta retida mostra o quanto ele havia se perturbado com a atribuição, certamente aguçada pelo estado de embriaguez enquanto escrevia de madrugada, entre 3 e 4h daquele dia, depois de voltar de mais uma noite no antigo bar Franciscano, na rua Líbero Badaró, região central de São Paulo. Ao lembrar a Lacerda de uma correspondência antiga em que já tocava nessas questões, Mário volta a esclarecer, na carta não enviada, o que distanciava os dois desde o início da correspondência:
Eu me lembro, não sei se você lembra, uma das primeiras cartas minhas, talvez a primeira de já entrados no terreno da camaradagem, carta inesquecível pelo custo que me deu de confessar lealmente a você que eu não poderia corresponder às esperanças e exigências de você, moço de outra idade e ideias e confessava ser um indivíduo que não tinha certeza, que acreditava em Deus, que por mais próximo de você em conclusões simplesmente humanas, estava inexoravelmente separado de você em possíveis conclusões políticas.
Apesar de ter ficado na gaveta, a carta de maio de 1942 nos traz importantes subsídios para refletir sobre impasses e maturações no pensamento de Mário de Andrade e de Carlos Lacerda. Nesta passagem, ainda que de forma indireta, resgatamos a instância enunciativa da carta que se perdeu em seu suporte material, já que todas as cartas dos anos 1930, como dito no início, foram extraviadas. É como em uma conversa em que lançamos mão da referência anterior por meio da recordação (“lembra que falei isso com você?”), de modo a resgatar uma ideia e/ou evento e conferir legitimidade ao argumento atual por meio do testemunho auditivo do outro, que atua involuntariamente como autor ao confirmar ou não a situação evocada. Ademais, as duas cartas nos impõem questões em torno de suas respectivas inserções em uma edição de correspondência, tendo em vista que não foram enviadas para o seu destinatário, que, com isso, não teve chances de responder e, assim, restabelecer o diálogo epistolar.
Ocorre que a correspondência não é apenas a reunião de uma troca encadeada de mensagens em uma linha sucessiva mais ou menos consoante à passagem dos dias. Se o calendário é o demônio do autor de um diário íntimo, como nos lembra Maurice Blanchot em O livro por vir, na escrita epistolar, o tempo é uma fronteira turva entre anjos e demônios.