McLean, 26 de agosto de 1968
Louie
A invasão da Tchecoslováquia me deixou consternado e indignado ao mesmo tempo. Há dias que ando pensando em fazer alguma coisa e não consigo descobrir o quê. Esbocei dois artigos (“Carta aberta a um comunista” e “A breve primavera de Praga”) mas concluí que estava muito mixed up para poder escrever o que quer que fosse. Uma noite destas, vendo na televisão um filme que mostrava os tanques russos entrando em Praga, em lugares que tua mãe e eu visitamos com amigos tchecos, fiquei tão comovido que tive de me levantar para pedir socorro a um valium. Bom. O que quero de ti é isto.
Se apareceu ou está para aparecer no Brasil algum manifesto de escritores, a teu critério decente, isto é, sem coronéis da nossa democracia nem fascistas ou gaviões do Vietnã – autorizo-te a incluir meu nome nesse manifesto. Mais ainda. Gostaria que desses divulgação à notícia (uma nota curta) de que minha posição nesse conflito é absolutamente contra a invasão ale… – imagina, eu ia escrevendo alemã – à invasão da Tchecoslováquia pelos russos e seus cupinchas. Se achares conveniente podes dizer (embora isto não me pareça importante) que estou escrevendo minhas impressões daquele país, e principalmente de Praga. Entrega uma nota ao Gastal. [1] Outra ao correspondente do Jornal do Brasil e outra ao Correio da Manhã. Pede ao Mario Lima que faça publicar a notícia no Jornal da Tarde de São Paulo do qual ele é correspondente aí em Porto Alegre. O IMPORTANTE PRA MIM É QUE SE SAIBA DA MINHA POSIÇÃO NESSA HISTÓRIA. Não quero que os conhecidos reacionários dessa e de outras praças digam que eu sou incoerente, pois me manifestei contra a agressão americana no Vietnã e fiquei calado diante da agressão comunista, etc.
Quando a gente está completamente sem comunicação com a pátria amada, fica completamente no ar. Confio em ti e te dou carte blanche (French) para resolver o assunto. E passemos a outras calamidades.
Lúcia,[2] agora entras tu, querida. Imaginem vocês que no dia seguinte ao da invasão da Tchecoslováquia chegou para nos visitar a famigerada Antonietta Cincotta, começou a falar no momento em que desceu do táxi, às 6h50 e continuou falando até às onze da noite. A mesma de sempre. Ou pior. Setenta e três anos. Rugas mais acentuadas, sim, mas sempre com o antigo zest, pep, etc. Deu o desespero na família. E durante dois dias e meio ninguém nesta casa ficou um instante tranquilo. Cincotta tomou conta de tudo e de todos. Entrou numa autobiografia alucinada. Nosso jantar que dura meia hora, durou uma hora e meia, porque entre uma garfada e outra a Cincotta contava uma história que durava de quinze a vinte minutos. Tudo em torno dela e de seus parentes. “You know, Erico, I’ve got style!” acha-se maravilhosa, com sex appeal, e está sempre pronta a contar que so and so a bolinou ou lhe propôs casamento. Eu estava desesperado. O caso tcheco estava me perturbando e eu escrevia artigos e protestos, mentalmente, mas a Cincotta não me dava trégua. Eu não podia pedir nem o sal, quando à mesa, porque ela exige toda a atenção do pobre interlocutor. Dave[3] mostrou slides novos, tirados no skyline drive, mas a cadela não olhou para a tela e não me deixou olhar. Quando eu conseguia pegar um livro, ela me interrompia e me impunha outra leitura. À noite eu ia para a cama irritado e dizia: “Velha indigna! Velha abominável!”. E o pior de tudo – segurem-se! – é que ela queria ir conosco ao Brasil para uma visita ou então, possivelmente, para lá se instalar, já que está aposentada. Nesse momento entrou em cena a brava Mafalda, que lhe disse que não a podíamos convidar para a nossa casa porque a casa era de vocês, nós meros hóspedes.
Eu entrei nesse momento e vi os olhos da Cincotta brilhantes de lágrimas. Finalmente o monstro foi embora há dois dias para a Califórnia. Ufa! Tudo e todos bem aqui. Os sobrinhos de vocês são de tal maneira loucos (o Mike menos) que a gente não pode deixar de achar graça. A última piada do Mike: “Vote for Nixon, and you’ll get an Agnew free”. (We have only a limited amount of Agnews left.).
Nossa pobre amiga Stella está no fim. Comunicamo-nos com ela ou com o Seligman dia sim dia não, pelo telefone. É questão de tempo. Temos uma pena danada da coitada, mas, como dizia a grande Bega,[4] que é que se vai fazer? Tenho mais coisas para contar, mas o papel está no fim e tenho de pôr esta carta no correio hoje.
Tivemos dez dias pavorosos de calor e umidade. Temperatura quase nos cem. Continuei dando minha caminhada diária de uma hora… mas em casa. Prometo escrever mais em breve. Espero a lista dos livros e das assinaturas de revista. Estive no Dr. Segal. Tudo okay.
Louie, manda me contar mais coisas do movimento (ou da apatia) política do Brasil. Lúcia, keep writing. Muita saudade de vocês. Mandem dizer quando (mais ou menos) pretendem estar no Rio e até quando. Lúcia, abraços especiais para tua mãe, que espero esteja ainda aí. (Na nossa opinião ela é a hóspede modelo. A anti-Cincotta.).
Beijos, beijos, beijos para todos!
Erico
Coleção Coordenadoria de Literatura/Acervo IMS
[1] N.S.: Paulo Fontoura Gastal (1922-1966), jornalista, crítico de cinema do Rio Grande do Sul.
[2] N.S.: Lúcia Helena Massa Verissimo, mulher de Luis Fernando Verissimo.
[3] N.S.: David Jaffe, genro de Erico Verissimo, casado com sua filha Clarissa, em cuja casa os pais estavam hospedados.
[4] N.S.: Abegahy Lopes, mãe de Erico Verissimo.
Luis Fernando Verissimo comenta carta enviada por seu pai