[Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 1964]

Às vezes o senhor me chamava para seu secretário, e isso me enchia de orgulho. Eu pequeno, o senhor tão grande — maior que um homem comum aos olhos de qualquer menino. Tudo no lugar era pequeno e doméstico, e o senhor, sim, era grande — começa que me acostumei a vê-lo montado a cavalo, no ritmo do galope ou do trote de animais tão de estimação que eram considerados joias de família, e homem montado, para o menino que mal chegava à crina do cavalo, tinha dimensão de estátua. E por outros motivos: força, trabalho, energia, até cólera, eram tudo grandezas. Então, com a pena mallat[1] arranhando o papel, escrevendo a carta que o senhor ditava, ou redigindo-a na trilha das recomendações, eu crescia por dentro, via-me necessário participante. Mais tarde percebi que o senhor, com suas letras aprendidas menos numa semana de escola do que na largueza da vida, redigia muito melhor do que eu, e apenas queria dar-me o gosto de imaginar que lhe prestava serviço.

Agora, como então, estou escrevendo carta; é para o senhor mesmo, a pedido de ninguém; eu me pedi. E dá-se isso: passado tanto tempo que não nos vemos, e tendo eu crescido o crescimento natural dos homens, é como se as peripécias desse período não se houvessem desenrolado, e me vejo aquele garoto que o achava maior que os outros homens (não era só pelo vulto alteado na sela, era ainda o tamanho especial da imagem interna). Não cresci, em comparação com o senhor. Tenho a idade que o senhor tinha quando me parecia velho — velho feito de baraúna[2] e nervos, mas em todo caso velho. E sinto que não alcançarei nunca sua dimensão. Parou o tempo de crescer; muitos outros tempos pararam, nós mesmos estamos parados um diante do outro. Para o resto do mundo, o senhor está longe inexistente; ninguém mais o lembra, salvo três, quatro pessoas. Mas eu me sento a seu lado e observo, estudo, confiro sua identidade, seu porte; é o senhor mesmo, não mudou nada.

Talvez até se mostre mais completo, como se os traços raspados, a simplificação extrema do semblante revelassem melhor a essência da pessoa, limpando-a do que é mera repetição de outras. Tudo ficou reduzido ao mínimo indestrutível, à relação calada de dois seres sem interferências de espaço e tempo. O senhor já não está a cavalo de bota e espora, não tem mais no bolso aquele relógio que marcava a hora de campear.

Vejo-o distante de cuidados, de parentes, da lavoura, da tropa, do gado, dos remédios da velhice. Agora o senhor é apenas o senhor mesmo, no que tem de único a criatura no mundo. E lhe escrevo esta carta como escrevia as antigas (era na mesa de jantar, defronte ao pátio ajardinado).

Para lhe agradecer alguma coisa que não foi agradecida na hora, e ficou como presente dado a quem não merecia? É melhor que não se agradeça evitando diminuir ou pagar o sem preço. Para me lembrar ao senhor? Para lembrá-lo a mim? Nosso entendimento se tornou tão fácil que dispensa a operação da lembrança. Escrevo-lhe talvez sugestionado porque alguns escolheram um dia para viver mais perto de outros e abraçá-los com ternura diversa? Mas esses abraçam fisicamente alguém em determinada casa, levam presentes, cumprem o ritual, e no nosso caso isso não é possível.

Não tenho nada de urgente ou especial para lhe contar. Nada a pedir ou a dar, mesmo porque o senhor atingiu a sublime despossuição e desnecessidade de tudo. É que muitas cartas, das mais importantes, se escrevem sem motivo ou interesse imediato, e são postas num correio absurdo, que as entrega à sua maneira e assim são respondidas e se estabelece a correspondência infinita. Mas, reparo que escrevi demais. O senhor recomendava ao menino: o essencial em duas palavras. Não aprendi a lição. Desculpe, e me deixe pôr a mão em seu ombro, carinhosamente.

Publicado no Correio da Manhã em 2/2/64.


[1] N.S.: Tipo de haste de aço para caligrafia.

[2] N.S.: Árvore de grande porte que fornece madeira escura, resistente e durável.