Há duas maneiras de contemplar a obra do escritor americano Philip K. Dick (1928 – 1982): a primeira, absolutamente válida, envolve admirar a sua portentosa imaginação, capaz de sonhar com outras realidades muito diferentes das nossas. Foi esse K. Dick que descobri ainda na adolescência, nas edições azul-bebê que dominavam os sebos no litoral gaúcho nos anos 1990, em traduções terríveis da Argonauta, um selo de ficção-científica de Portugal. A imaginação é a arma mais poderosa de qualquer escritor de ficção científica, mas, além de tudo, K. Dick era um escritor que sabia o que estava fazendo com as palavras, e seu domínio de estilo, que muitas vezes parece um embrião do Pynchonda década 1970, foi o que me fez posicioná-lo no topo do panteão.

A curiosidade me levou, muitos anos atrás, a ler Eu estou vivo e vocês estão mortos, a biografia romanceada que Emmanuel Carrère escreveu de K. Dick. E foi através desse livro que uma segunda maneira de amar K. Dick se abriu para mim – não como um escritor de imaginação, mas como um narrador autobiográfico. Pode parecer que K. Dick está escrevendo sobre colônias em Marte ou sobre uma celebridade que se torna uma figura anônima do dia para a noite. Conhecendo a vida de K. Dick, descobre-se que muitas vezes o americano estava escrevendo sobre a própria vida, suas mulheres e ex-mulheres, as drogas, a Califórnia e o FBI que vivia batendo à sua porta.

Na minha investigação acerca da biografia deste meu ídolo, deparei com duas cartas que me marcaram. A primeira parece ter sumido da internet, pois não a reencontro. Vocês, leitores, terão que ficar com minha lembrança. Era uma correspondência entre K. Dick e um amigo – talvez Norman Spinrad. K. Dick, em crise (como sempre), expôs o dilema que o consumia: deveria se matar ou se mudar para Orange County, na Califórnia? O amigo ofereceu-lhe o melhor conselho que já ouvi ser dado a uma pessoa com depressão: “Se eu fosse você, me mudaria para Orange County. Afinal, sempre dá para se matar depois.” K. Dick seguiu a sugestão do amigo e na Califórnia escreveu seus romances mais complexos e instigantes, como VALIS e Um reflexo na escuridão.

A segunda carta é de 1972 e parece ter saído da imaginação de outro escritor, que também colocava K. Dick num altar: o chileno Roberto Bolaño (1953 – 2003). Nela, K. Dick escreve ao FBI, como bom cidadão americano, denunciando uma organização de caráter neonazista que teria lhe abordado. Seguem alguns trechos traduzidos por mim:

Federal Bureau of Investigation
Washington, D.C.

Senhores:

Sou um autor bastante conhecido de ficção científica, e um dos meus romances trata da Alemanha nazista (…) Falo disso porque há vários meses atrás, fui abordado por um indivíduo que acho que pertence a uma organização secreta envolvida em política, armas ilegais etc., que me pressionou para colocar informações codificadas nos meus próximos romances “para serem lidas pelas pessoas certas aqui e acolá”, nas palavras dele. Eu me recusei.

O motivo pelo qual estou entrando em contato agora é porque parece que outros escritores de ficção científica podem ter sido abordados por outros membros dessa organização obviamente antiamericana. (…) Reforço a urgência porque nos últimos dias  deparei com um romance de ficção científica que circulou bastante e que contém a essência do material que esse indivíduo me apresentou como sendo a base da codificação.

O romance de K. Dick mencionado pelo próprio é O homem no castelo alto. Neste, o autor imagina um cenário alternativo no qual o Eixo venceu a Segunda Guerra e o mundo é dominado por nazifascistas. Num recurso de espelhamento borgeano (não à toa, Ursula K. LeGuin chamou K. Dick de Borges norte-americano), há um personagem de um escritor que escreveu um romance que mostra um mundo no qual os Aliados ganharam, e esse mundo é acessado por outro personagem numa espécie de visão. É uma obra filosófica que discute não apenas o conceito de realidade como o poder político da ficção.

A ideia de que – na vida real – haveria um grupo secreto tentando aliciar escritores de ficção científica para transmitir mensagens nazistas parece trama de Roberto Bolaño. O autor chileno compôs uma espécie de cânone às avessas com seu La literatura nazi en América, elencando diversos autores fictícios do passado, presente e futuro que, por motivos nem sempre explícitos, figuram como nazistas. Há, é claro, um espaço dedicado aos autores de ficção-científica norte-americanos, com seus sonhos de um Terceiro Reich maravilhoso.

Já em 2666, sua obra-prima, um dos personagens é visto como o grande autor russo por sua visão utópica do futuro glorioso soviético; no entanto, quando o sonho vira pesadelo e a idealização do comunismo vira stalinismo, o mesmo autor passa a ser perseguido por seus livros repletos de imaginação – um Kazimir Malevich do sci-fi. Os temas centrais do chileno, ética e estética, são espelhados nesses personagens que escrevem ficção-científica. Bolaño mostrou ao longo de sua obra como governos totalitários buscam cooptar os intelectuais (algo apontado em Noturno do Chile) e moldar o imaginário dos artistas – e nesse sentido, o que melhor exemplificaria tal coisa, senão uma organização contatando autores populares de ficção-científica? É uma pena que Roberto Bolaño provavelmente morreu sem ter lido esta carta de K. Dick.

Sabe-se que o autor americano sofria de diversos problemas mentais; pode-se especular que a carta ao FBI seja baseada em delírios paranoicos. Que o grupo nunca existiu. Ficção e realidade são sempre difíceis de separar quando se trata da vida e obra do autor. Como Bolaño afirmou numa entrevista, “cada vez mais K. Dick me parece um escritor realista.”

A escrita da imaginação é essencialmente política e, a julgar por esta carta, de conteúdo verdadeiro ou falso, Philip K. Dick parecia estar muito ciente disso.