[Maricá, janeiro de 1941]
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Existe também… sei lá o quê. Talvez qualquer coisa que valha a pena. Pelo menos para olhar do ônibus e sorrir.
Ou senão, por que não se entregar ao mundo, mesmo sem compreendê-lo? Individualmente é absurdo procurar a solução. Ela se encontra misturada aos séculos, a todos os homens, a toda a natureza. E até o teu maior ídolo em literatura ou em ciência nada mais fez do que acrescentar cegamente mais um dado ao problema.
Outra coisa: o que você, você individualmente, faria de especial se não houvesse a ruindade do mundo? A ausência dela seria o ideal para todos os homens em conjunto. Para um só não bastaria. Garanto-lhe que sempre haveria a arte de evasão e as preces e as fugas para Bach. Como diria o meu amigo, Tasso de Silveira:[1] “Tudo vem do pecado original…”
Alô, bem. Não creio que tenha pecado exatamente no ponto principal. E suponho que esta carta já o encontre em outra disposição e seja inútil, o que ela seria, aliás, de qualquer modo.
Quanto a mim, estou mais ou menos o.k. Não consegui, no entanto, soltar minhas rédeas. Planos, programas, consciência, vigilância. O que vale é que misturado a tudo isso, está a vida que não para.
Um abraço de
Clarice
P.S.: Nunca vi uma alma tão feia quanto a minha letra.
Arquivo Clarice Lispector / Acervo IMS. Esta carta foi publicada em Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 23.
[1] Tasso de Silveira (1895-1968), poeta e ensaísta brasileiro que Clarice entrevistara em dezembro de 1940 para a revista Vamos Ler!.