Drummond, no poema “Receita de ano novo”, propõe um “ano novo sem comparação com todo o tempo já vivido/(mal vivido talvez ou sem sentido)/para você ganhar um ano/não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,/mas novo nas sementinhas do vir-a-ser”. Mas somos afeitos à memória, ao balanço e à recordação. Temos por hábito rever o ano que passou com suas dificuldades e alegrias e, em várias modalidades, ranquear os momentos e até as pessoas que passaram por ele. Prêmios de melhores do ano pululam por todos os cantos, produzindo uma competição que atiça obrigatoriamente a rememoração.

Aqui no Correio IMS não é diferente. Somos feitos desse tempo que se sucedeu, dessa tentativa de preservação da memória que persiste: a correspondência. Tudo fica ainda mais especial neste ano em que o Correio IMS passou por uma reformulação, ganhou novo editor, novo layout, novas funcionalidades e publicou novas (velhas) cartas e novos textos em seu blog. Com tanta novidade, que contamos em Carta dos editores, nos permitimos discordar do poeta e fazer o balanço dos mais lidos no novo site. Além disso, acompanhar essa lista dá uma espécie de sismógrafo temporal: o que as pessoas ainda buscam na leitura de correspondências? Vamos ao cômputo.

Vargas nas cabeças

Em 2024 completaram-se 70 anos do suicídio de Getúlio Vargas, sem dúvida um dos maiores eventos da segunda metade do século XX brasileiro. Provavelmente a data redonda motivou que a carta mais lida do ano fosse a Carta testamento de Getúlio Vargas: duas versões. Vargas mobiliza menos paixões políticas que outrora, mas pelo visto não menos cliques.

Uma árvore

A reedição e a viralização no tik tok de trechos de Cartas perto do coração – livro que foi organizado por Fernando Sabino, com sua troca de correspondência com Clarice Lispector – deu para Clarice parece uma árvore o segundo lugar de carta mais lida. Além de, com seu humor habitual, mandar notícias dos amigos, reclamar da demora da chegada das cartas, contar fofocas e fazer brincadeiras com Clarice, ele termina dizendo “Me escreva uma carta de sete páginas, Clarice”, logo depois de tanta galhofa com sua destinatária-amiga. Coisas de Sabino. Suas piadas aliadas a um tom confessional incomum têm dado vida longa a essa correspondência que vem inundando as redes sociais com trechos de profunda singeleza e cumplicidade desses dois grandes escritores que foram, sobretudo, amigos.

Machado de Assis nunca sai de moda

A crítica sempre manteve os olhos no maior escritor brasileiro, que, além de contar em 2024 com reedições, foi fruto de uma “viravolta” crítica em que se tornou “quebradeiro” e representante forte da cultura afro-brasileira. A terceira carta mais lida, a tocante Foi-se a melhor parte da minha vida, fala de um momento chave de sua existência: o falecimento da mulher, Carolina. Em carta para seu amigo e grande intelectual e político do Império, Joaquim Nabuco, Machado mostra seu sofrimento com a partida da companheira de 35 anos. Com a nota pesarosa, lamenta não ter ido antes, mas diz que logo irá revê-la. O ano redondo da morte de Carolina, 1904, pode nos dar uma pista de por que a carta foi tão lida, mas, como diz o próprio Machado de Assis para sua amada no soneto célebre, “se tenho […]pensamentos de vida formulados, são pensamentos idos e vividos”. Ouso completar: seja em que data for.

Eu vim da Bahia…

Dois monumentos baianos se relacionam à quarta carta mais lida desse ano, a formosa Caymmi, irresistível. Nada melhor que uma carta de Dorival Caymmi contando seus segredos e mistérios para Jorge Amado. Ajudam a compor o cenário os orixás, Mãe Menininha, Camafeu de Oxóssi, Stela de Oxóssi, João Ubaldo Ribeiro e outras figurinhas carimbadas da mitologia baiana. Caymmi pode ter descrito toda essa atmosfera para fazer inveja a Jorge Amado, que estava morando, nessa época, na Inglaterra. Uma carta com trilha sonora sob as bênçãos de Janaína e os mistérios do mar da Bahia, em que o remetente pede a bênção e suplica ao destinatário “volte logo, sua casa é aqui e eu sou seu irmão Caymmi”.

Fernandona e, outra vez, Clarice

Outra data redonda pode ter impulsionado as visitas a uma carta no nosso Correio IMS. A carta de Fernanda Montenegro para Clarice Lispector figurou em quinto lugar; é a profunda E o nosso mundo, Clarice?. Fernanda Montenegro completou 95 anos em plena atividade. Na sofrida carta datada do ano que nunca acabou, 1968, Fernanda Montenegro dá notícias do clima de terror permanente na produção artística em plena ditadura militar. A desilusão e a “comunhão com a barata” comandam o tom da carta de Fernanda para Clarice. Em tempos em que golpes são montados às claras, a lembrança de momentos de agonia é saudável para a manutenção da democracia. Lembrar para não repetir.

Todo show que se preze tem um bis

Ainda na toada de datas redondas e música, temos uma das cartas mais lidas, que foi a despedida de Vinicius de Moraes do parceiro Tom Jobim. Em 2024 completaram-se 30 anos da morte de Tom, e a carta de Vinicius Toda a solidão do mundo ganha outra camada de leitura. Na despedida, Vinicius comenta sobre a comida que o espera e deixa notícias do sucesso de canções. Termina dizendo: “e ficamos cantando e cantando o samba até o sol raiar.”

O que irá raiar é o ano de 2025. Com novas (velhas) cartas e possivelmente com novas dificuldades e alegrias, que ensejarão novos cliques e novos rankings dos mais lidos. Munido de papel de carta, caneta, selos lambidos e um destinatário confiável, faça seu 2025 ser uma linda carta.

P.S.: Nosso blog vai de vento em popa. O texto mais lido foi a tradução da Última carta de Virginia Woolf para seu marido Leonard. O ensaio mais lido foi de Lyza Brasil, As cartas apasionadas de Frida Kahlo, seguido pela tradução da carta de Alan Turing para a mãe de seu primeiro amor, O primeiro amor de Alan Turing. O amor também deu o ar de sua graça no quarto texto mais lido, em que Elvia Bezerra comenta a correspondência entre Albert Camus e Maria Casàres no ensaio As saudades brasileiras de Albert Camus e Maria Casàres. O amor definitivamente está no ar.