Depois da viagem que Manuel Bandeira fez à Europa para se tratar da tuberculose, em 1913, só voltaria ao continente em 1957, já como o consagrado Poeta de Pasárgada e um dos maiores do Brasil. Com a doença sob controle – foi um tuberculoso cuidadosíssimo –, começou a aproveitar o passeio desde a travessia marítima: “Repouso atlântico, absoluto, uma delícia a intimidade com o oceano”, escrevia ele à amiga Rachel de Queiroz em carta de Londres, de 14 de setembro daquele ano.
Acompanhado da holandesa Fréddy Blank, “a afeição de toda uma vida”, ele desembarcou inicialmente em Roterdã. Em seguida foi a Haia, que, segundo ele, “tem aquela graça das cidades grandes que parecem pequenas. Das cidades que têm um só grande coração”.
Depois de nove dias na Holanda, seguiu com a companheira para Londres. Mas a capital londrina, aonde chegou em 19 de agosto, não lhe foi tão acolhedora quanto as cidades holandesas. Pareceu-lhe “um despotismo de grande, mete medo”, continuava ele a contar à amiga. A consequência do impacto foi um “breakdown nervoso” que o obrigou a voltar à penicilina e a permanecer no hotel. Felizmente, recuperou-se em pouco tempo e, quando julgou que reconquistara a sua “meia saúde habitual”, quis dividir com Rachel as novidades, as boas e as ruins, encerrando a carta com “Do seu adorador, Manuel”.
Não deixou de registrar que contribuíra para o seu restabelecimento a assessoria do poeta português Alberto de Lacerda, então com 28 anos, que lhe mostrou o que havia de melhor em Londres. “Um amor de rapaz”, escrevia ele à amiga. De volta ao Brasil, dedicaria duas crônicas a esse amigo: “Alberto de Lacerda” e “Chelsea”. A segunda, sobre a curiosíssima decoração do apartamento que Lacerda alugava no bairro londrino onde morara Oscar Wilde e T. S. Eliot.
Mas seria outro português, o poeta e dramaturgo Jorge de Sena, quem acompanharia o nosso poeta à catedral de Westminster. Ali ele viu capela a capela, túmulo a túmulo, “com uma curiosidade infinitamente sábia e juvenil”, observaria Sena, encantado, no artigo “Londres e dois grandes poetas”.
Não foi à toa – segue ainda a relatar Sena – que Bandeira se deteve, com ar meditativo, diante de um retrato de Maria Stuart, na Wallace Collection. Admirador da rainha escocesa, é ele, Bandeira, o autor da magnífica tradução da peça de Schiller, Maria Stuart, personagem a quem devotava a maior admiração.
Visitas museológicas à parte, o grande encontro dessa viagem foi com Edith Sitwell, poeta inglesa de origem aristocrática nascida em 1887, portanto, um ano depois de Bandeira, e que, assim como ele, no Brasil, se destacara no Modernismo europeu da década de 1920.
A visita resultou de mais uma articulação de Alberto de Lacerda, que já tinha contato com Sitwell e quis que Bandeira a conhecesse. Jorge de Sena, que se juntara a Lacerda para proporcionar o que pudesse de melhor ao visitante, também se integrou ao grupo e, em seu artigo, não esconde a admiração pelo brasileiro:
Todas as inflexões elípticas e discretas que fazem a magia dos seus versos, a segura consciência do fabbro eminente, a franca dignidade, humilde quantum satis, de quem conhece a sua própria grandeza, tudo isso vibra na sua voz, na sua simpatia humana, na firmeza certeira das suas observações, no seu à vontade de hipercivilizado, fruto admirável de Europa como só o Brasil poderia produzir.
Há, desse encontro, a descrição, feita pelo próprio Bandeira, na crônica intitulada “Edith Sitwell”, incluída em Flauta de papel. Segundo o cronista, a visita ocorreu no dia 8 de setembro, no Durrants Hotel, onde ele conheceu a estranha inglesa:
A presença de Sitwell é impressionante. Veste-se de maneira personalíssima. Naquela tarde trajava um blusão de brocado indiano, rosa e ouro, saia preta, fourrure, o rosto pálido e longo enquadrado por um véu saindo de dentro de um pequeno chapéu que ela mandou copiar do chapéu de Henrique VIII. Nesse rosto, tão fino em todos os seus traços, parecem olhar do fundo dos tempos e avistar até o fim das idades.
Não escapou a Jorge de Sena a observação do comportamento de grand seigneur de Manuel Bandeira: ao se despedir, com os Collected Poems de Sitwell na mão, o poeta agradeceu à dama inglesa com uma reverência elegante. Deixou-a “sem gaguejar, sem tropeçar nos móveis, como um grande senhor em sua casa” – finaliza Sena.
Nesse momento, não posso deixar de lembrar o que respondeu o arquiteto e decorador brasileiro Júlio Senna, quando lhe perguntaram o que é elegância: “Parece fácil, mas é difícil, porque a elegância principia na simplicidade, e é muito difícil ser simples. A verdadeira elegância é abstrata. A falsa elegância é concreta, e de que maneira!” – respondeu ele, acrescentando adiante que, na sua opinião, São Francisco de Assis é especial modelo de elegância.
Voltando a Edith Sitwell, tratei-a aqui como anfitriã porque, pela leitura da carta de Bandeira a Rachel de Queiroz, e pelas crônicas que citei aqui, tive impressão de que a inglesa, moradora de um castelo na Itália, recepcionava os amigos no Durrants, onde provavelmente se hospedava durante suas temporadas londrinas. Para ter certeza do tipo de relação da poeta com o Hotel, cheguei mesmo a escrever para a administração, confiante nos implacáveis registros de algum livro de folhas hoje amareladas, guardado num severo arquivo do hotel, onde um funcionário diligente o localizaria rapidamente. Mas como até agora não recebi resposta, fica aqui a dúvida.
Nem só de breakdown, poesia e museus viveu Bandeira seus dias em Londres. Como não podia deixar de acontecer, deslumbrou-se com os jardins da cidade, e, com seu proverbial bom humor, deve ter se divertido em divulgar, na crônica “O verão em Londres”, declarando não saber se era verdade ou piada, o seguinte episódio que tinha ouvido contar no país de Shakespeare. Diziam que um ricaço americano quis ter, em sua casa, gramados como os ingleses e que, indo à Inglaterra, perguntara a um deles:
Como é que vocês conseguiram ter gramados tão bonitos?
Ao que o inglês respondeu:
– Regando e aparando.
– É tudo o que fazem?
– É, mas durante séculos.
Entre crônicas e cartas originais, não nego que é com certa volúpia que me detenho nas últimas, documentos originais do arquivo de Rachel de Queiroz, sob a guarda do Instituto Moreira Salles. Originais também na emoção genuína aí depositada, porque escritas de coração para coração, sem imaginar que um dia se tornariam itens de acervo. Complementam o que já era conhecido do público por meio das crônicas. E enriquecem o conhecimento do fundo emocional em que Manuel Bandeira se reuniu a seus pares, na Londres de 1957.