[Rio de Janeiro], 19 de agosto de 1906
Meu querido Nabuco,[1]
Quero agradecer-lhe a impressão que me deixaram estas suas páginas de pensamentos e recordações. Vão aparecer justamente quando você cuida de tarefas práticas de ordem política. Um professor de Douai, referindo-se à influência relativa do pensador e do homem público, perguntava uma vez (assim o conta Dietrich) se haveria grande progresso em colocar Aristides acima de Platão, e Pitt acima de Locke. Concluía pela negativa. Você nos dá juntos o homem público e o pensador. Esta obra, não feita agora mas agora publicada, vem mostrar que em meio dos graves trabalhos que o Estado lhe confiou, não repudia as faculdades de artista que primeiro exerceu e tão brilhantemente lhe criaram a carreira literária.
Erro é dizer, como você diz em uma destas páginas, que “nada há mais cansativo que ler pensamentos”. Só o tédio cansa, meu amigo, e este mal não entrou aqui, onde também não teve acolhida a vulgaridade. Ambos, aliás, são seus naturais inimigos. Também não é acertado crer que “se alguns espíritos os leem, é só por distração, e são raros”. Quando fosse verdade, eu seria desses raros. Desde cedo, li muito Pascal, para não citar mais que este, e afirmo-lhe que não foi por distração. Ainda hoje, quando torno a tais leituras, e me consolo no desconsolo do Eclesiastes, acho-lhes o mesmo sabor de outrora. Se alguma vez me sucede discordar do que leio, sempre agradeço a maneira por que acho expresso o desacordo.
Pensamentos valem e vivem pela observação exata ou nova, pela reflexão aguda ou profunda; não menos querem a originalidade, a simplicidade e a graça do dizer. Tal é o caso deste seu livro. Todos virão a ele, atraídos pela substância, que é aguda e muita vez profunda, e encantados da forma, que é sempre bela. Há nestas páginas a história alternada da influência religiosa e filosófica, da observação moral e estética, e da experiência pessoal, já agora longa. O seu interior está aqui aberto às vistas por aquela forma lapidária que a memória retém melhor. Ideias de infinito e de absoluto, você as inscreve de modo direto ou sugestivo, e a nota espiritual é ainda a característica das suas páginas. Que em todas resplandece um otimismo sereno e forte, não é preciso dizer-lho; melhor o sabe, porque o sente deveras. Aqui o vejo confessado e claro, até nos lugares de alguma tristeza ou desânimo, pois a tristeza é facilmente consolada, e o desânimo acha depressa um surto.
Não destacarei algumas destas ideias e reflexões para não parecer que trago toda a flor; por numerosas que fossem, muito mais flor ficaria lá. Ao cabo, para mostrar que sinto a beleza e a verdade particular delas, bastaria apontar três ou quatro. Esta do livro I: “Mui raramente as belas vidas são interiormente felizes; sempre é preciso sacrificar muita coisa à unidade”, é das que evocam recordações históricas, ou observações diretas, e nas mãos de alguém, narrador e psicólogo, podia dar um livro. O mesmo digo daquela outra, que é também uma lição política: “Muita vez se perde uma vida, porque no lugar em que cabia ponto final se lança um ponto de interrogação”. Sabe-se o que era a vida dos anacoretas, mas dizer como você, que “eles só conheceram dois estados, o de oração e o de sono, e provavelmente ainda dormindo estavam rezando”, é pôr nesta última frase a intensidade e a continuidade do motivo espiritual do recolhimento, e dar do anacoreta imagem mais viva que todo um capítulo.
Nada mais natural que esta forma de conceito inspire imitações, e provavelmente naufrágios. As faculdades que exige são especiais e raras; e é mais difícil vingar nela que em composição narrativa e seguida. Exemplo da arte particular deste gênero é aquele seu pensamento CVII do livro III. Certamente, o povo já havia dito, por modo direto e chão, que ninguém está contente com a sua sorte; mas este outro figurado e alegórico é só da imaginação e do estilo dela: “Se houvesse um escritório de permuta para as felicidades que uns invejam aos outros, todos iriam lá trocar a sua”. Assim muitas outras, assim esta imagem de contrastes e imperfeições relativas: “A borboleta acha-nos pesados, o pavão malvestidos, o rouxinol roucos, e a águia rasteiros”.
Em meio de todo este pensado e lapidado, as reminiscências que você aqui pôs falam pela voz da saudade e do mistério, como esse quadro no cemitério das cidades. Você exprime magnificamente aquela fusão da morte e da natureza, por extenso e em resumo, e atribui aos próprios enterrados ali a notícia de que “a morte é o desfolhar da alma em vista da eterna primavera”. Todos gostarão dessa forma de dizer, que para alguns será apenas poética, e a poesia é um dos tons do livro. Igualmente sugestivo é o quadro do dia de chuva e o do dia de nevoeiro, ambos em Petrópolis também, como este da “estrada caiada de luar”, e este outro das árvores de altos galhos e folhas finas.
Confessando e definindo a influência de Renan em seu espírito, confessa você ao mesmo que “o diletantismo dele o transviou”. Toda essa exposição é sincera, e no introito exata. Efetivamente, ainda me lembra o tempo em que um gesto seu, de pura fascinação, me mostrou todo o alcance da influência que Chateaubriand exercia então em seu espírito. O estudo do contraste destes dois homens é altamente fino e cheio de interesse. Um e outro lá vão, e a prova melhor da veracidade da confissão aqui feita é a equidade do juízo, a franqueza da crítica, o modo por que afirma que, apesar da religiosidade do exegeta, não se pode contentar com a filosofia dele.
Reli “Massangana”. Essa página da infância, já narrada em nossa língua, e agora transposta à francesa, que você cultiva também com amor, dá imagem da vida e do engenho do Norte, ainda para quem os conhece de oitiva ou de leitura; deve ser verdadeira.
Não há aqui só o homem de pensamento ou apenas temperado por ele; há ainda o sentimento evocado e saudoso, a obediência viva que se compraz em acudir ao impulso da vontade. Tudo aí, desde o sino do trabalho até a paciência do trabalhador, a velha madrinha, senhora do engenho, e a jovem mucama, tudo respira esse passado que não torna, nem com as doçuras ao coração do moço antigo, nem com as amarguras ao cérebro do atual pensador. Tudo lá vai com os primeiros educadores eminentes do seu espírito, ficando você neste trabalho de história e de política, que ora faz em benefício de um nome grande e comum a todos nós; mas o pensamento vive e viverá. Adeus, meu caro Nabuco, ainda uma vez agradeço a impressão que me deu; e oxalá não esqueça este velho amigo em quem a admiração reforça a afeição, que é grande.
Machado de Assis
Correspondência Machado de Assis & Joaquim Nabuco. Organização de Graça Aranha. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2003, pp. 138-141.
[1] N.E.: Esta carta foi publicada entre as críticas literárias de Machado de Assis, coligidas por Mário de Alencar em Crítica Literária (Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1959).