Berlim, 9 de agosto de 1937

Carlos, meu querido,

Conforme o prometido, quero escrever-te. Inicialmente, desejo falar-te da permissão que obtive para conversar com a madame Ewert.[1] Por fim as administrações cederam às mesmas solicitações repetidas e, assim, pude revê-la pela primeira vez após dez meses e mostrar-lhe nossa filhinha. Compreenderás que, após todos os sofrimentos comuns, eu a quero como a uma irmã. Naturalmente os longos meses de prisão numa cela isolada deixaram suas marcas – ela tem atualmente os cabelos totalmente brancos e está muito nervosa. Mostra-se muito inquieta com a falta de notícias de seu marido. Algumas linhas do seu próprio punho seriam, sem dúvida, um grande conforto para ela. A pequena Anita Leocádia reagiu com gritos terríveis à recepção um tanto violenta. Mas acalmou-se rapidamente e, depois de tudo, ficou sentada pacificamente no colo da tia Sabo,[2] puxando-lhe o nariz e os cabelos. Permitiram-me também lhe dar o romance O guarani, o que vai constituir motivo de alegria para ela em sua solidão…

Agora quero falar-te da nossa pequenina. É admirável como se desenvolve a cada dia. É interessante ver que esse desenvolvimento não se faz em linha reta. Observo isso por muitas coisas. Por exemplo. Houve dias em que ela ia muito bem ao “trono”, mas agora nada se consegue nesse sentido. Ela fica crispada, não quer ficar sentada e chora. O mesmo acontece com a colher para comer. Durante algum tempo tudo ia muito bem, mas depois tornou-se tão impaciente que quase saltava de meus braços, e agora tudo vai novamente bem. Como em outros domínios da vida humana, não há progresso nem regressão…

O que mais provoca o interesse da pequenina no momento são as fitas e os botões. Ela não pode ver um nó sem desatá-lo e metê-lo na boca e um botão sem mordê-lo. Como seus sapatinhos de lã em geral são amarrados por fitas enfeitadas com pompons, acontece o seguinte: não obstante os múltiplos nós, ela desata o nó e tira o sapato. A fita do outro sapato é esticada também o máximo possível, passando por cima do dedo grande do outro pé (naturalmente os dois pés estão no ar) e depois ela morde com o maior entusiasmo o pompom que fica na ponta da fita. Às vezes, um pompom é arrancado e tenho a maior dificuldade para tirá-lo da sua boca. Sua preferência por essa brincadeira levou-me a apelidá-la de “Pom-Pom”, de brincadeira. Com seus dois indicadores ela está fazendo uma coisa inteiramente nova. Quando quer alguma coisa, estende a mão para obtê-la. Se, então, sua mão está bem próxima do objeto desejado, ela faz um gancho com os indicadores, tenta com prudência e somente então pega o objeto. Isso é muito engraçado.

À noite, às seis horas, quando ela já tomou seu leite, temos uma hora de bate-papo. Posso então baixar minha cama, que durante o dia deve estar contra a parede; estendo uma coberta com a pequenina em cima e me sento na cama. Ela se aproxima de mim bem depressa e, então, brinca comigo. Devo permanecer totalmente imóvel, e ela passa suas mãos suaves e quentes no meu rosto. Se isto me incomoda e eu faço uma careta, ela acha tal coisa ainda muito melhor e ri muito alto. Com muita frequência, ela ajuizadamente faz apenas “bravo-bravo” com as mãos. Ela sabe muito bem que tem direito a esta hora de brincadeira e se eu tenho alguma coisa ainda a fazer, ela reclama e seus olhos me seguem a cada passo, revelando sua atitude de espera. Estou tricotando-lhe umas calças para o inverno. Ela absolutamente não gosta, se os olhos de sua mãe estão voltados o tempo todo para o trabalho. Então me faz lembrar alguém que, em ocasiões semelhantes, reagia de maneira parecida…

Atualmente ela já está tão grande que é difícil abraçá-la com força. Ela põe, então, seus dois braços em torno do meu pescoço, se aperta contra mim e grita de alegria. Diante das outras pessoas, ela ficou muito mais reservada. Olha-as com curiosidade e depois me olha de maneira interrogativa, como se quisesse saber minha opinião sobre a pessoa. Para rir amistosamente, ela já deve conhecer a pessoa. Com isto, chega por hoje da pequena Anita Leocádia.

Como fiquei feliz ao saber pela Lygia que não te encontras mais na Polícia Especial.[3] Conheço a Casa de Correção. Estás na capela? E podes ler quatro jornais! Sei que os jornais são para ti como o ar para viver. Como gostaria de estar sentada ao teu lado, ouvindo teus comentários! Espero que ainda exista, como no meu tempo, a rádio da ANL que ia ao ar todas as noites. Penso nas belas canções que uniam os operários, camponeses, soldados, marinheiros, intelectuais, oficiais, negros, brancos, mulatos, homens e mulheres e expressavam o grande sonho do povo brasileiro. Que lástima que não estou mais lá! Diz-me, pois, todos os detalhes da tua vida atual. Será mais fácil então acompanhar-te ao menos pelo pensamento.

Mas, meu querido, devo terminar. Posso dizer-te apenas que captei inteiramente o significado da bela palavra brasileira “saudades” e que às vezes as tenho tantas que não sei onde metê-las.

Karli, gostaria de tomar tuas mãos e contemplar teu querido rosto.

Tua filhinha e a Olga te abraçam afetuosamente.

Anos tormentosos: Luiz Carlos Prestes: correspondência da prisão (1936-1945). Organização de Anita Leocadia e Lygia Prestes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2000, pp. 393-396.

[1] N.S.: Elise Ewert foi deportada para a Alemanha junto com Olga. Era casada com Arthur Ewert, comunista alemão que participou da luta antifascista no Brasil, no ano de 1935.
[2] N.S.: Apelido de Elise Ewert.
[3] N.S.: Ao ser preso, Prestes foi levado para o quartel da Polícia Especial, no centro do Rio, onde permaneceu por mais de um ano até ser transferido, no dia 8 de julho de 1937, para uma cela construída especialmente para ele no pátio da Casa de Correção, situada à rua Frei Caneca, onde também funcionava a Casa de Detenção, local para o qual Olga fora levada antes de sua deportação.