Belo Horizonte, 23 de março de [19]88
Caro Otto,
Recebi esta manhã – 7h30 horas – a notícia da morte de Hélio Pellegrino. Fiquei chocado, como não podia deixar de ser. Acho uma injustiça que uma pessoa de tanta vitalidade, de tanto amor a tudo – à comida, às paisagens, às mulheres, ao homem em geral, a Deus, às ideias políticas pelas quais se apaixonava – desaparecesse. Gente assim não devia morrer. Só os céticos, os descrentes, os desamparados, os solitários podiam morrer, pois sempre lhes falta um mínimo de apego à vida, ao mundo, ao cotidiano. Hélio era um ser apaixonado, vitalíssimo, em comunhão com o povo, com o seu círculo, exaltado amigos dos amigos, sem inimizades pela excessiva generosidade – só era inimigo do poder, dos exploradores que se encastelam no governo, na direção das empresas; no afã de dominar e sugar o próximo. Era um homem único, admirável em tudo. Conheci-o há bem mais de quarenta anos. Vimo-nos e falamo-nos ao longo dessas décadas, mesmo agora distantes em cidades. Acho que não se passou um ano que não nos víssemos, era sempre o mesmo, inteligente, brilhante, feliz. Se apesar de falta de intimidade assim mesmo sua morte me choca tanto, imagino o que o fato pode significar para você; certamente quem mais viveu perto dele. Podia ter sido um grande poeta, se se dedicasse a escrever de modo contumaz. Foi um extraordinário articulista. Sei de dezenas de pessoas que o liam com calor, com paixão. Além de seus correligionários petistas, políticos ou religiosos, havia pessoas excepcionais. Antonio Candido, por exemplo, me disse há uns dois anos que considerava sua leitura uma coisa reanimadora, uma injeção de ânimo, de desejo de viver, de crença no próximo – coisa cada vez mais difícil, ai de nós, quando o mundo é dominado por gente da mais baixa extração. É outro mineiro que se vai. “Minas não há mais”, dizia Drumonnd. Guimarães Rosa se foi, Drummond se foi, Hélio, menos importante para o mundo, igualmente importante para nós, também se foi. Em compensação, há muitos outros mineiros de proa, donos do poder. Melhor seria se não estivessem nessas posições, recolhidos às próprias mediocridades, das quais nunca deviam ter saído. Não desejo que morram, não desejaria nem para Hitler, mas bem que os queria fora de cena. Hoje, porém, a cena é deles. Hélio viveu bem. Teve muitos filhos, muitas mulheres, foi muito amado, como também muito amou. Não foi jamais ilhado, mas viveu em comunhão. Que Deus o tenha. Para nós, sobretudo, que tivemos o privilégio de seu convívio, é uma lembrança já definitiva. Ainda que vivêssemos mil anos ele continuaria vivo para nós. Sobretudo para você, Otto, seguramente quem melhor o conheceu. Depois de uma certa idade o fato da morte se torna comum, já que não causa estupor. Habituamo-nos com a coisa, embora ela sempre nos revolte. Queria escrever mais, meu caro Otto, mas acho que estou no domínio do lugar comum. Nada tenho a dizer fora desse tom. Desculpe-me. Nem quero aborrecê-lo mais. Você já teve hoje um quinhão pesado de sofrimento. Já lhe manifestei minha solidariedade. Apagou-se o turbilhão, o homem-comunicação, o homem-comício. Hélio era um verbal, um discurso. E como falava e escrevia bem! Maiakóvski devia ser assim, possivelmente Castro Alves também. É um gênero que, em suas formas extremas, é admirável. Não é o meu gênero, mas em sua expressão plena me seduz. Como qualquer outro gênero, aliás. Agora virei de fato sentencioso. Talvez até para fugir da emoção. São cinco e meia, ainda de calor certo abafado. O outono ainda não chegou aqui, continua o calor. Vou terminar. Foi penoso escrever esta carta. Cheguei até a achar que não a escreveria. Depois, fui perturbado seis vezes. Eu que quase não telefono, hoje recebi cinco telefonemas. Havia chamado o Etienne, ele não estava, deixei o recado. Ele então chamou, falamos meia hora. Se ela, a carta, seria naturalmente desalinhada, nas condições em que foi feita o é muito mais. Você saberá revelá-la, que você sempre soube ver as coisas, apreendendo-as no essencial: lucidez e agudeza lhe sobram, empatando com a sua generosidade, suprema. Desculpe-me, Otto, mas precisava escrever algo. Escrevi até demais. Não tem importância. Tudo de bom. Temos que ser generosos uns com outros, que nosso tempo já se anuncia. Por que ser então exigente? Aceitemos as coisas, aceitemos as pessoas, os amigos, mesmo que chatos. Até outro dia. Indo ao Rio, telefono-lhe. Preciso conhecer seu refúgio. Até lá. Chego a hesitar: rasgo a carta, mando-a? “É melhor arrepender-se de ter feito que de não ter feito”, aprendo com você e seus sóbrios aforismos de Confúcio de BH dos anos quarenta. Mando pois a carta.
Tudo de bom, amigo admirável.
O abraço solidário de sempre,
Francisco Iglésias
Arquivo Otto Lara Resende/ Acervo IMS.