Como vai?
Moradora de Berna, na Suíça, desde abril de 1946, quando acompanhou o marido, Maury Gurgel Valente, em função diplomática, Clarice Lispector teve, dentre seus correspondentes assíduos, o amigo Lúcio Cardoso, por quem nutria profunda admiração. Como ele se demorasse na resposta às suas cartas, ela lhe enviou esta, em que não esconde seu desapontamento.
Berna, 31 [de] outubro [de] 1946
Alô, Lúcio,
isto é apenas pra perguntar como você vai.
O quê? ah, estou bem, obrigada.
Sim, com frio também, obrigada.
O quê? ah, sim, mesmo no outono já se tem um grau abaixo de zero.
Que eu vou morrer de frio? Ah, sim, você talvez tenha razão. Que você tem me escrito muito? sim, recebo sempre suas cartas; até ia lhe dizer que não me escrevesse tanto porque você pode se cansar. O quê? que você fez isso por amizade? é claro, foi o que pensei. Que você me mandou seus livros? realmente, todos os dias recebo um. Se eu li seu poema “Miradouro”?[1] sim, li e gostei tanto, tanto. O quê? desculpe, não estou mais ouvindo, a distância é grande, minha “aura” está acabando e o esforço desta comunicação é tão sobre-humano que mal tenho força de assinar
Clarice
Clarice Lispector. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 110.
[1] “Aqui ficarás, como um degredo./ Nada virá alterar o repouso/ e nem o silêncio do teu olhar./ Seremos fortes outra vez/ e lutaremos na antiga selva/ com o rio em nossos ombros/ e no ouvido o som do mar.// Aqui levantarei os teus limites./ Terás a boca áspera do granito,/ a estrada sozinha e amarela/ e o vento casto./ Nada te falará da passada loucura./ Deitar-te-ás no solo duro/ e musgo crescerá em tuas mãos abertas.// Aqui farei arder o teu destino./ Não te darei nada além das águas/ e da noite, solene, como escudo./ Serás como o cacto sobre a rocha/ e da tua carne aberta pelo vento,/ entre espinhos molhados e orvalho/ uma flor feita de sal e sangue/ se inclinará sobre o abismo.”