Rio de Janeiro, 9 [de] janeiro [de] 1950

Juju flor,

Sua carta do dia 4 foi a alegria de ontem, e muito nos enterneceu, sobretudo pelo relato circunstanciado da viagem a Deán Funes,[1] com aqueles esquecimentos que tanto atrapalharam você e que serviram para confirmar aquilo que nós já sabíamos, a saber, que Manolo é uma grande figura. Por aqui, a maior viagem dos últimos tempos é a de Dolores, quando vai à Tijuca experimentar vestidos com dona Amedéia Crivelli, nome bastante feio, mas que se tornaria invocativo se se fizesse a ablação da vogal inicial. Essas excursões são sempre emocionantes, porque se fazem à hora do rush do almoço ou do jantar, e o atraso do cônjuge desperta as inquietações de praxe numa família mineira e de imaginação catastrófica. Mas não há nada. Eu por mim, estou novamente comprometido a ir a Ouro Preto, com Rodrigo, mas prefiro que de minha biografia continue a constar que nunca fui lá. E é só. Em compensação, estamos fazendo planos para a reforma deste boteco. Já veio aqui um mestre de obras, que vai apresentar orçamento para mudar os barrotes da sala de jantar (estão podres), tapar fendas das paredes, substituir portais e janelas roídos de cupim, e até mesmo (se não ficar muito caro) arrancar os negros lambris da sala de jantar para fazer em seu lugar uma pintura amena e clara.

Dolores manda responder à sua consulta sobre Guiomar dizendo que ela está à sua disposição. Contudo, é preciso esperar uns dias para regularizar a sua situação civil, pois não tem papéis de identidade e creio mesmo que, civilmente, não existe. Quanto ao medo de ela ficar solta por aí, sendo tão nova, quem sabe se a Augusta, não estando propriamente na flor da idade, e sendo pessoa de alto e reconhecido critério, não a substituiria com vantagem?… Mas, sossegue quanto à responsabilidade: uma vez que Guiomar topa a viagem e a residência aí, e como não está entregue a nós, não temos com que nos preocupar. Espero que a pigmentação algo amorenada não constitua handicap[2] para ela, entre os arianos daí.  Enfim, vamos providenciar.

Os cartões de Natal chegaram (Capanema e Osvaldo acusaram-nos o recebimento). Outros pacotes de livros estão seguindo: o Webster, o Petit Prince de Saint-Exupéry, Dámaso Alonso, Teatro de Sartre, Grand Meaulnes,[3] Kafka, […],[4] antologia de Bandeira etc. Espero que tudo chegue a contento.

O que você me diz sobre o poeminha de Natal é justo. A linha é Supervielle,[5] metade pela natureza do assunto, metade por afinidade natural. Curioso é que não leio há muito o tal, e mesmo ando um pouco enjoado da doçura-e-melancolia dele.

Política em ponto morto. O Congresso está fechado, todo mundo em férias, e a aproximação Dutra-Getúlio parece que fracassou, com a mensagem deste no ano-novo. É difícil imaginar que candidato sairá disso tudo, havendo mesmo a suposição de que não sairá nenhum. Em todo o caso, o ministro da Guerra declarou que não admitirá golpes. Sua posição parece ser a mesma de Dutra, quando ministro de Getúlio, convertendo-se em fiador da legalidade: é candidato em potencial, a quem os golpes não interessam. Não tenho mandado o jornal do Lacerda porque ele está abaixo da crítica. Muita farofa para sair aquilo que você viu.

O recibo do diploma é coisa relativamente simples, e eu mesmo posso requerê-lo por você. Apenas, em determinado trâmite, há necessidade de uma assinatura sua no próprio diploma. A coisa fica aí uns seiscentos cruzeiros, segundo me informaram. Se você acha que vale a pena, providencio. Não se preocupe com a despesa, que, pela tradição, compete ao progenitor.

Inteiramente de acordo com a sua resolução de não providenciar mais alojamento para brasileiros em Belo Horizonte. Depois da Mariazinha, o caso da Irene, que também desistiu. São uns chatos, com perdão da palavra.

Com a greve dos aeroviários daí, não sei se já lhe terá chegado às mãos o pacote remetido via portador misterioso do Rebelo. Digo misterioso, porque Rebelo não quis dar-nos o nome dele. Seguiram vestidos, caneta, pulseira etc. Diga-nos se recebeu.

Lilia e Carmem têm vindo aqui bater papo com Dolores (parece que a notícia de Regina e Teresa Coutinho terem jantado conosco causou profunda impressão nelas.)

E até, filhinha querida. Para Manolo e você o nosso abraço muito de verdade. Saudades e carinhos do

Pai

Arquivo pessoal Pedro Augusto Graña Drummond.

[1] N.S.: Deán Funes é uma cidade na província de Córdoba, na Argentina.
[2] N.S.: Obstáculo, desvantagem.
[3] N.S.: Le Grand Meaulnes, de 1913, é o único romance de Alain-Fournier, publicado pouco antes de sua morte, em 1914.
[4] N.S.: Ilegível.
[5] N.S.: Jules Supervielle (1884-1960). Poeta francês nascido no Uruguai. Em Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos, o crítico literário John Gledson analisa a influência de Supervielle e outros escritores na obra drummondiana.