Paris, 14 [de] fevereiro [de] 1979

Guarnieri,

Foi no meio da noite um telefonema que devia ter sido ao meio-dia, com o sol a pino; foi no meio do sono um telefonema, que devia ter sido em horas de lucidez; foi com os olhos meio fechados, quando deviam estar arregalados; foi com os ouvidos meio surdos do barulho dos loubards[1] em motocicletas no Boulevard Beaumarchais, aqui perto, lá embaixo, que eu ouvi a tua voz lá de longe, inesperada, bem-vinda.

Está vendo? Já me confundi. Eu devia ter dito: ouvia as motocicletas lá longe, distantes, e você aqui tão perto, no telefone e na saudade, você e o Mario, o Fernando e o Zeca.

Foi bom.

Pois é, meu irmão. Dizia o meu pai, em bom português trasmontano, que “a vida nos prega cada peça…”. A que me pregou a mim acaba de entrar agora no oitavo ato. Eu sempre penso nessa frase que o meu pai me dizia, porque “peça” dá a ideia de alguma coisa imutável, texto escrito que é preciso obedecer, repetir sem­pre igual. Pois nessa peça que me escreveu a ditadura eu sempre pro­curei, rebelde, improvisar um pouco, achar uma variante, pelo menos mudar a inflexão, o timbre.

Pra mim, nesses oito anos, muitas vezes continuar vivo foi uma decisão política: eu não podia fazer a eles esse favor, não podia desistir, nem da vida nem do trabalho. Tra­balhar, não importa tanto como, nem em que país, nem em que condi­ções, nem com que resultados – importava apenas não calar a boca, continuar dizendo as coisas que eles não queriam ouvir. O exílio sempre foi, para a ditadura, uma arma. O homem transplantado perde as suas raízes, perde o poder de fogo, perde a combatividade. A massa de paraguaios que vai viver na Argentina, a massa de argentinos que vai viver em Barcelona ou Madrid, de chilenos que vai para Norrköping,[2] de árabes que vem para cá, do mundo inteiro que vem para cá, toda es­sa massa de gente encontra todas as dificuldades, hostilidades, inadaptações: a língua (que muitos chegam a não falar direito), a cultura, o trabalho, os amigos, o país diferente. Por isso as ditaduras gostam de duas coisas: matar e matar! Matar enterrando, e matar exilando. Por isso essas coisas sempre foram pra mim importantes: viver e tra­balhar. Trabalhar como prova de estar vivo. Estou.

E foi pensando assim que eu recolhi minhas raízes e procurei onde cravá-las. E como não achei terra firme, cra­vei minhas raízes no vento. Com toda força, cravei minhas raízes bem fundo, bem no meio do vento! O vento não ficou quieto não. Acho até que ele nem gostou. Mas eu me agarrei firme na garupa. E por aí ando: às vezes, sou eu que levo, às vezes, sou levado.

Mas isso são coisas que vocês aí já sabem, já ouviram tantas vezes, em tantas reportagens sobre exilados, em tantos livros, e agora até em peças. Mas tem uma coisa que vocês talvez não saibam e que é importante saber. Pra nós, que estamos fora, é muito importante o exemplo de vocês, que continuam aí den­tro. E quando a gente cansa um pouco, e quando a gente pensa em desistir, sempre a gente escuta um grito que vem daí (e nisso, meu irmão, você errou: o grito vosso não está parado não, ele viaja longe e a gente aqui de longe, a gente escuta!) e esse grito volante e veloz ele chega até onde a gente está, e nos dá um ânimo enorme, vontade de continuar, fazer mais, fazer melhor.

É duro escrever no exílio; mas aí dentro, Guarnieri, como deve ser duro escrever! É verdade que nós temos nossas raízes no vento; mas também é verdade que a ditadura aí espalha herbicidas em todas as raízes. Sobreviver aqui é difícil, e aí é difícil também. E, continuar brigando, como tantos de vocês continuaram, com tanta coragem, com tanta força (e às ve­zes, com tantos ardis, com elipses mas sem eclipses) isso nos estimula, pode crer.

Pra nós, aqui fora, foi sempre importante ver que para cada um de nós que saía, era outro aí que aparecia. E eu, que tenho viajado pelo mundo afora, sei que isso não é regra: é exceção. Em geral, as pessoas se calam, resignadas. Vo­cês puseram a boca no mundo!

Os nossos gritos e os nossos murros, por aqui e por aí, acabaram se encontrando sempre. E é isso que as ditaduras não gostam: elas não gostam que as pessoas se gostem, se estimulem, emulem, ajudem, que as pessoas se solidarizem. Por isso é importante a solidariedade. E essa não tem faltado. As di­taduras não estão nada contentes: que bom! Espero que fiquem mais tristes, que morram de tristeza. Todas! Um dia vão!

Ceco, velho, estamos ficando velhos! Pelo menos eu: você, espero que não. Outro dia, conversando com o Fer­nando, que lembrava o primeiro dia em que trabalhou com o teu fi­lho, eu lembrei o primeiro dia em que trabalhei com você. Passou o tempo. Mas nós fizemos coisas, não é mesmo? Muito nós fizemos. Acho que não perdemos tempo não, aproveitamos bem. Acho que valeu a pena, e vai continuar valendo, porque nós vamos continuar. Pode ser que um dia, como você disse, a gente se encontre de novo e volte a escrever junto. (O Edu disse a mesma coisa em Buenos Aires). Pode ser. E pode ser que não, que os descaminhos não se juntem. Mas o importante é que a gente continue junto, mesmo se­parados!

No mais, meu irmão, no mais a lira tenho destemperada e a voz enrouquecida, como o caolho lusitano. Mas mesmo rouco e desafinado, mas mesmo com calo no dedo e a viola quebrada de tanta alfândega, mesmo assim vou continuar gritando cá por fora, estimulado pelos murros que vocês continuam dando aí por dentro.

Muito carinho e muita saudade de você e da Vânia, dos filhos que eu conheço e dos que ainda não, de todos que nós éramos juntos, Miriam, Flávio, Silvio, Paulo, Dina, Isabel, Fauzi, Antonio, seu Orlando, Maria, Orion, lembra do Dilércio?, lembra daquele gordo que ficava na porta e depois morreu?, lembra quando o Arena[3] ainda era redondo, e daquela fila de casas quando o Redondo[4] ainda não existia? (ainda existe?), e das brigas, e das festas, e do Lima, do David José, e do Plínio, e das brigas do Plínio com os censores, e dos baianos, e dos que foram ficando pelo caminho, cada qual por seu motivo, do Vianinha, do Paulo Pontes, da Heleny, e vou parando porque a saudade às vezes é alegre, outras vezes vai entristecendo, vai dando raiva, prefiro por isso lembrar só da Vera, do Migliaccio, do Xavier, do Milton, do Roberto da Riva, do Henrique, do Ruy, e vou parando, agora vou parando mesmo.

Até breve, Guarnieri. Até.

Acervo Augusto Boal

[1] N.S.: Adolescentes rebeldes, em francês.
[2] N.S.: Cidade sueca.
[3] N.S.: O Teatro de Arena foi fundado em São Paulo, em 1953, pelo ator e diretor José Renato, e teve Augusto Boal como um dos seus principais diretores.
[4] N.S.: Bar em frente ao Teatro de Arena.