Detalhes da Carta

Hélio Pellegrino, amigo de toda a vida de Otto Lara Resende, lhe envia, de Minas, esta carta escrita em dois momentos diferentes, que vão do desespero à esperança. A profunda angústia do primeiro resultaria em “Prosa de 24 de agosto de 1947”, transposição desta carta para versos, que podem ser vistos aqui na galeria de imagens.

Belo Horizonte, 24 de agosto de 1947

Meu querido Otto,

Estou a escrever-lhe num dos momentos mais definitivos da minha vida, num desses momentos em que o cálice das tristezas parece que vai transbordar. Hoje, Otto, neste agora, neste momento, a minha angústia é tamanha, o meu sofrimento é tão alto, que tudo o mais – mundo, mundo, mundo – parece pequeno, mesquinho, apagado, e só a minha dor brilha dentro da noite, como uma grande fogueira. Hoje, Otto, é um dia em que o suicídio seria a única solução. Hoje, não sei por que hoje, toquei a fímbria do caos, a profundidade mesma da minha pessoa insolúvel, e tudo se precipita. Hoje, Otto, hoje, estou sozinho no meu quarto, estou sozinho em casa, estou sozinho no universo, e ao meu lado está uma garrafa de vinho madeira R, colheita de 1928, e nela me mergulho, e nela me embebedo, e nela, só nela encontro algum volume que possa conter os destroços da minha alma despedaçada. Estou próximo ao pileque, não sei se mando esta carta, apenas descobri que o poeta Mário de Sá-Carneiro, que se suicidou em Paris, a 26 de abril de 1916, é meu irmão na carne como nos domingos, meu primo, tanto quanto você, Otto, meu amigo desde a eternidade, meu amigo, amém.

*

Agora é manhã do outro dia e tudo serenou. Há sol, há pássaros, há vontade de viver. Em todo o caso, Otto, acredite-me possesso da mais soberana ressaca que se possa imaginar. Porque nunca fui tão bêbado, tão desesperado, tão amargo quanto ontem. As vagas maldosas da vida se somaram de repente e uma grande crista raivosa, feita de vômito e de espuma, se abateu sobre mim. Espero em Deus que o fenômeno não se repita. Porque senão, Otto, senão, não sei o que poderá acontecer. Desse começo de carta, que não pude terminar por excesso de álcool, desentranhei o poema que lhe mando. Ah! Se você tiver aí as poesias do Mário de Sá-Carneiro, procure um poema à página 157, chamado “Caranguejola”[1], e leia-o em minha homenagem. Esse poema eu o gritava ontem, aos berros, para toda a vizinhança, para o mundo inteiro. Que testamento mais impressionante! E receba mais o abraço do seu

Hélio.

 

P.S.: Isto é vinho

[nota do autor para justificar mancha no final da carta]


 

[1] Caranguejola – Mário de Sá-Carneiro

E não me façam mais nada…
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado…
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira –
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais –  não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar…
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar…

Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho – que amor…
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
Plo menos era o sossego completo… História! Era a melhor das vidas…

Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
– Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito…

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza…

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co’a breca! levem-me prà enfermaria! –
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital – higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível – por causa da legenda…
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda –
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo…

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras…
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

Últimos Poemas, Paris, Novembro 1915.