No primeiro dia da turnê que Elis Regina fez para o lançamento do álbum Transversal do Tempo, em Recife, dedicou o show a Edival Nunes da Silva, o Cajá, estudante pernambucano de sociologia que fora preso e estava sob tortura dos militares. Como a polícia local ameaçou cancelar as apresentações, Elis, no segundo dia, foi menos explícita na homenagem ao jovem, mas reverenciou-o de forma criativa: entrou no palco sem Dudu Portes, o baterista da banda, e alegou não poder fazer o show sem o integrante, que estava sentado em uma das poltronas do Teatro Santa Isabel, camuflado no meio do público. A cena foi a deixa para Elis, ousada, dizer: “Vem cá, já. Não posso começar o espetáculo sem você”. Segundo o próprio Cajá, “o público logo entendeu o recado e aplaudiu”. Como não conseguiu visitar o estudante na prisão, Elis deixou esta carta em papel timbrado do hotel em que estava hospedada.
Cajá
Estou por aqui. Por sua terra forte e maravilhosa. Sabidamente mais que eu. Me desculpe a ausência. Embora ela seja somente física. E determinada por uma covardia estúpida bem sei. Mas que abrigada no meu interior, me impede gestos maiores e mais amplos. Isso tudo me faz sentir extremamente inferior perto de pessoa como você.
Mas, já lhe disse, a ausência é só física. Cada momento de sua vida eu acompanho num misto de admiração, respeito e sei lá mais quê.
Que Deus e sua força nunca estejam ausentes. Que Ele sempre lhe proteja. Que Ele sempre vele por seus minutos. Estou rezando por você. E confio no futuro. E na Justiça.
Ainda iremos nos encontrar. Esteja certo.
Perdoe minha fraqueza.
Muita perseverança. Muita força. Muita [paciência], meu irmão.
Elis Regina
Carta publicada na Revista Continente, nº 172 (abril/2015).