Buenos Aires, [1940]

Marina,

Todas as perguntas que você me formulou, ontem, eu já as havia antecipadamente respondido na minha última carta. Nada ficou sem respostas, nem mesmo o que eu penso do futuro e o que penso fazer daqui por diante. É curioso que vinte anos de convívio de todos os instantes não tenham sido o bastante para que você saiba de antemão o que penso ou vou fazer! Mais curioso ainda é que todo esse tempo de vida em comum não haja provocado nenhuma modificação na sua maneira de ver e encarar a vida e o mundo.

Hoje, como no dia em que nos casamos, você continua inabalável nas suas convicções de um patriarcalismo estreito e renitente, para o qual o universo cabe dentro do círculo da família e todo o espaço que não tenda exclusivamente a melhorar a sorte material dos membros da tribo é um roubo de que são vítimas, tanto você como os nossos filhos. Tudo quanto eu possa ter feito pela nossa terra, empregando o prestígio do Estado[1] na construção de instituições como o Instituto Biológico, a Faculdade de Filosofia, a Universidade; na luta contra a oligarquia perrepista,[2] primeiro, e, depois, contra as ditaduras; a resistência que eu possa oferecer à adversidade, recusando a aceitar fatos consumados, na aparência; tudo, enfim, que constituiu e constitui a minha existência, a tomar o que você me diz e escreve ao pé da letra, foi e continua a ser esforço, energia e tempo que eu deixei de empregar na obtenção da felicidade de nossa família, isto é, na felicidade dos meninos, sua e minha.

Esse choque entre a sua e a minha maneira de entender o meu dever é todo o drama entre a geração brasileira que nos levou à tristíssima condição em que nos achamos e que nos levará provavelmente à escravização total, e os pouquíssimos que veem as coisas como elas realmente são e que, por isso mesmo, procuram, por todos os meios conjurar a catástrofe final. Resumindo, eu poderei dizer que é o choque entre os que formaram a sua mentalidade no “Triângulo” do tempo de bonde de burro e que se julgavam em paz com a própria consciência quando conseguiam dar aos filhos dinheiro e uma professora de francês, e os que cresceram do outro lado do oceano no meio das gerações que deveriam sacrificar-se nas batalhas do Marin, de Verdun[3] etc.

Houve um escritor brasileiro que via admiravelmente esse angustioso problema: Gilberto Freire, em Sobrados e mocambos. Tire da estante do Chiquinho esse esplêndido volume e leia o que ele diz nas páginas 131 e mais ou menos 150. Aí está a análise sociológica do que eu tantas vezes tenho dito a você. Ele se refere à sociedade brasileira do Segundo Império. O que ele diz, entretanto, serve como uma luva à sociedade de hoje, tão pouco evoluímos na maneira de ver e encarar a educação dos filhos e o papel que devemos representar na coletividade a que pertencemos.

Não, positivamente, não. Nem deixarei de lutar por um Brasil que venha a ser o orgulho de meus filhos, nem, tampouco, deixo de crer na vitória das democracias. Para certificarmos de que esta vive, basta termos em conta a estupenda atitude do povo inglês, cada dia que passa mais disposto a vencer, custe o que custar, a selvageria alemã. Hoje em dia tenho um único receio e este é que os alemães consigam atacar a Inglaterra, não nas ilhas, que eu considero inabordáveis e, conseguintemente, inexpugnáveis, mas na África, por Gibraltar, com o consentimento e ajuda da Espanha, e pela Sicília e a ilha Pantelária,[4] com a defecção dos exércitos franceses de Tunis e Marrocos.

Tudo isso, entretanto, é um mero receio, pois cada vez me convenço mais de que tanto o general Noguès, em Marrocos, como o Peyrouton, em Tunísia, e ainda o Mittelhauser,[5] na Síria, refletindo o sentir das tropas e das populações do império francês, jamais procriarão com as infâmias do governo de Pétain,[6] e que mais cedo do que se pensa estarão em franca oposição aos traidores da França.

As notícias que aqui chegam dão grandes esperanças num sentido. Depois, há a considerar que até agora a esquadra francesa nada disse sobre a sua adesão à vergonhosa capitulação de Compiègne.[7] Se ela não estivesse disposta a continuar a luta ao lado da esquadra inglesa, há muito que Roma e Berlim já o teriam proclamado a todos os povos da terra. Vê você que nem tudo é cor-de-rosa do lado da barbárie. Lembre-se, também, do que ainda há bem pouco tempo eu lhe dizia da Rússia e veja o que lá vai pelos Bálcãs. Que terrível imbróglio! E quanta surpresa aquilo por lá não reservará aos alemães! Digam estes o que quiserem, a verdade é que o avanço russo sobre a Bessarábia é tremendo golpe na retaguarda do nazismo e que seria considerar-se Stalin o mais vil dos homens ou supor que ele resolva manter-se daqui por diante de braços cruzados, à espera de que Hitler vença a Inglaterra para em seguida liquidar contas com Moscou.

Se se quiser ter a prova de que não são só esses os motivos para que o fascismo e o nazismo não se sintam perto da vitória final, leiam-se com cuidado as declarações feitas ontem nas comissões de Marinha e guerra do Senado norte-americano pelos ministros Stimson e Knox. Ambos foram claros tanto em declarar que é indispensável ajudar os ingleses, como quando afirmaram que os Estados Unidos só estarão garantidos enquanto a esquadra inglesa dominar o Atlântico e se a nação não assumir uma atitude passiva.

Em bom português isso quer dizer que no dia em que os Estados Unidos estiverem preparados, dentro de quatro a seis meses ou um ano, poder-se-á ter certeza de que entrarão na luta. Ora, a Inglaterra sabe disso, a Rússia também. Noguès, Mittelhauser e Peyrouton sabem onde têm o nariz. Por que, então, desanimarmos? A França também. Isso não significa que o povo francês esteja disposto a humilhar-se. O que ficou de pé do mundo civilizado é ainda da estatura a enfrentar com vantagem a selvageria de olhos claros. O império britânico, os Estados Unidos, a Rússia e o império francês são uma força respeitabilíssima! Que o que eu estou dizendo não é pura fantasia provam a atitude enérgica da Inglaterra em face dos arreganhos japoneses em Hong Kong e as declarações conciliadoras das autoridades japonesas sobre as situações destas a respeito daquela possessão britânica. Fosse realmente desesperada a posição do império britânico e a atitude de Tóquio seria outra, muito outra. Não, tout ne va pas pour le mieux, dans le monde fasciste-nazi.[8]

Teté e Alfredo que se reanimem. Ela que sinta fé e o Alfredo que se una com seus demais amigos para lutar. O momento não é para os Jeremias e ele que procure imitar o Bernard Shaw, o Wells e o Huxley. Todos estes estão na estacada, cada um de acordo com a sua idade e o seu temperamento, no posto que lhe compete. O Alfredo é moço, tem talento e bons amigos, que coordene tudo isso e, no campo universitário ou nas letras, procure ajudar a abrir caminho para o Brasil de amanhã. Chorar pela França de nada adianta. Se quisermos servi-la, é servir antes o Brasil tornando-o capaz de amanhã entrar na imensa bagarre.[9]

Acabo de falar pelo telefone com o Flores da Cunha. Nunca saiu de Montevidéu. Tudo quanto se publicou a respeito de uma suposta ida dele ao Rio é pura infâmia! Veja você a que grau a degradação e baixeza se vai atingindo por aí!

Nada de novo no seio da colônia, a não ser a partida do Charlot, que causou consternação no 1598 do Alvear e a sua carta a dona Nenê, que causou grande júbilo a toda a família Magalhães. Com mil beijos e abraços para a trinca e para você do seu

Julinho

Cartas do exílio: a troca de correspondência entre Marina e Júlio de Mesquita Filho. Organização de Ruy Mesquita Filho. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2006, pp. 147-149.

[1] N.S.: Jornal O Estado de S. Paulo, fundado em 1875 e do qual Júlio de Mesquita Filho foi diretor.
[2] N.S.: Refere-se ao Partido Republicano Paulista, predominante no Estado de São Paulo durante toda a República Velha.
[3] N.S.: Provavelmente batalha do Marne. Esta e a de Verdun foram duas batalhas importantes da Primeira Guerra Mundial.
[4] N.S.: Ilha e município da região da Sicília, na Itália.
[5] N.S.: Charles Noguès (1876-1971), Marcel Peyrouton (1887-1983) e Eugène Mittelhauser (1873-1949), generais franceses que comandaram tropas no Marrocos, na Tunísia e no Líbano durante a Segunda Guerra Mundial.
[6] N.S.: Philippe Pétain (1856-1951), conhecido como marechal Pétain, foi herói francês na Primeira Guerra Mundial e julgado traidor na Segunda Guerra Mundial. De 11 de julho de 1940 a 20 de agosto de 1944 foi presidente da França em Vichy, cidade onde esteve a serviço do governo nazista instalado na França.
[7] N.S.: Cidade francesa, à beira do rio Oise, onde foi assinado o armistício que consagrou a rendição da França ao governo de Hitler.
[8] N.S.: “nem tudo está bem no mundo fascista-nazista”.
[9] N.S.: Luta, em francês.