Rio de Janeiro, 6 de agosto de 1956

Meu poeta

Queria ter palavras melhores e mais bonitas para chegar-me a você. Soubesse eu a fórmula mágica e o melhor de meu talento lhe seria dado.

Está aqui comigo o número doze da excelente Revista da Música Popular do moço Lúcio Rangel, conhecedor profundo do nosso populário e dono de iniciativas excelentes. No referido número o meu poeta escreveu sobre Literatura de violão, assunto que, pela sua complexidade, pouco tem sido abordado pelos críticos especializados, mesmo os de maior envergadura. Desse modo, tal artigo cresce em importância e interesse pelo fato de ter sido escrito por uma das figuras máximas da cultura brasileira. É um estudo que se caracteriza pela sobriedade, e, sobretudo, pelo tom honesto que predominou em todo o texto. Mas pontos existem que não refletem fielmente a real posição do instrumento dentro do cenário moderno da chamada música erudita.

Aguardei a saída do número seguinte da Revista, na esperança de que o assunto fosse de novo abordado. Tal, infelizmente, não aconteceu. Vencendo então um medo definitivo e uma indecisão absoluta (“enfrentar” Bandeira é uma coisa muito séria!), estou aqui para meter a colher na panela alheia. E com a agravante de saber que sou a pessoa menos indicada para fazê-lo. Se outros méritos não tiver esse meu gesto, louve-se-lhe a coragem, o supremo atrevimento!

Meu poeta diz que “todo mundo sabe como o timbre do violão fica desmerecido junto das vozes de um violino”, e eu gostaria de discordar. São bem distintas as qualidades de som dos dois instrumentos. No violino a nota pode ser mais prolongada, propriedade exclusiva dos instrumentos de cordas friccionadas. O violão, entretanto, é mais autônomo, pois não exige outras vozes para acompanhamento. E essas vozes “redondas e cheias” (cito o poeta) não se desmerecem nem comprometem sua beleza, sonoridade e volume perto de qualquer outro instrumento, seja de cordas, sopro ou percussão. No Concerto em Ré ópus 99 de Castelnuovo Tedesco para violão e orquestra (solista: Andrés Segovia), podemos notar a grandeza de que ele se reveste junto de outras vozes. Recomendaria ao meu poeta ouvir o Concertino do brasileiro Guido Santorsola, gravado por Luise Walker, das mais conceituadas violonistas da atualidade, com a Orquestra Sinfônica de Viena. E também o Concierto de Aranjuez, de Joaquín Rodrigo, e tendo como solista Narciso Yepes. Mas voltemos ao assunto. Quanto às dificuldades de execução ambos exigem estudo intenso e ininterrupto para se atingir um grau razoável de aproveitamento. Na técnica de braço creio que ambos se equiparam. É de se suspeitar que a execução do violão supere a do violino quanto às dificuldades devidas ao aproveitamento maior da mão direita, que exige toda uma técnica especial para os dedos polegar, médio, indicador e anelar. Alguns cantores flamencos usam o dedo mínimo para os rasgueados. Os recursos do violão são múltiplos: sons harmônicos, ligados, caixa, tremollo, fagot (ou sons abafados, erroneamente chamados pizzicato), mão esquerda; o arpejo e o glissés (arraste) atingem sua plenitude no violão, sua tessitura é maior que a do violino. Vale transcrever as palavras de Manuel de FalIa a Pujol (criador da Escola Razonada): “y como no afirmar que entre los instrumentos de cuerdas con mástil, es la guitarra el más completo y rico por sus posibilidades harmonicopolifónicas?”.  Sim, mas que instrumento ingrato! Um dedo mal colocado no traste e eis toda uma passagem prejudicada. Em muitos instrumentos a nota já está pronta, preparadinha – basta feri-la para ouvi-la límpida e sonora. O piano é um exemplo. Mas um mínimo deslize no braço do violão – e pronto!

E essa fascinação que o violonista que acompanhava Paganini exercia sobre opúblico é bastante compreensível, embora assim não considere o meu querido poeta. Não consegui descobrir a identidade do violonista citado, mas posso afirmar que Paganini, na maioria das vezes, em concertos públicos, era o próprio executante ao violão, e acompanhado pelo violino de seu discípulo Camilo Ernesto Sivori. Paganini compôs extensa obra para o instrumento, tendo confessado: “Faço uso da guitarra, de quando em vez, para estimular minha fantasia na composição e para concretizar melhor a harmonia que não posso obter no violino”. O Paganini compositor violonista é fascinante. Eu não quero cansar meu poeta com dados, edições das obras etc. Durante quatro anos o diabólico Paganini abandonou o violino completamente, dedicando-se a estudar guitarra e compondo para ela. Seu violão ele o deixou para Berlioz. Pode encontrá-lo hoje no Museu de Ópera de Paris.

No quarto parágrafo de seu memorável artigo, reconhecendo “que a sua técnica é ingratíssima”, diz que “o tempo perdido em adquirir nele um mecanismo sofrível será bem mais compensador aplicado a outro instrumento mais rico – e mais nobre”. Meu querido poeta, nenhum artista que se realize num instrumento e que atinja aquele máximo – e cito indistintamente Kreisler, Casals e Segovia – dirá que perdeu seu tempo depois de um árduo caminho sobre estudos, concertos e o trabalho de superação das dificuldades que todo instrumento apresenta. E por que “mais rico e mais nobre”? Se é verdade que o violão herdou do alaúde um repertório importante, também não é menos verdade que se tornou um instrumento dos mais ricos na sua classe de instrumento de cordas, contendo literatura original vastíssima e de alta qualidade, como demonstrarei mais adiante. Quero reportar-me agora a um parágrafo do admirável artigo em que meu poeta escreveu sobre Josefina Robledo e Agustín Barrios. Esses dois guitarristas foram o toque mágico, o ponto de partida para a consagração nacional do instrumental. Seria injusto, entretanto, esquecer Quincas Laranjeiras como pioneiro do ensino do violão por música, no Brasil.

Lendo a Revista do Violão editada a partir de 1929, tomei conhecimento maior do movimento. As “risonhas esperanças”, as “delicadas e sutis promessas” e os “finos ornamentos da nossa sociedade” aparecem – pequenas Robledos em estado de burilação – em suas páginas, sobraçando o instrumento. Era a epidemia do violão, provocada pela vinda dos dois guitarristas. Havia até um clube – o Icarahy Violão Club – com trezentos e trinta sócios, à razão de dez mil réis por cabeça. [Francisco] Tárrega era louvado na Revista no melhor estilo da época. Felizmente não se omitia o nome de [Fernando] Sor, embora não se falasse dele com o entusiasmo que era de se esperar. Aguado era para os mais privilegiados, poucos por sinal. Tárrega, Tárrega e o resto era silêncio. Enquanto isso Barrios fazia o público vibrar de entusiasmo com seu malabarismo e suas obras de grande efeito.

Pesquisando os programas dos recitais do concertista paraguaio, não consegui ver a inclusão de nenhum compositor original para o instrumento. A ausência de Sor era completa. Robledo distinguia-se pelo ecletismo de seu repertório e, pelas críticas da época, é de se suspeitar que tivesse sido mais sóbria do que o paraguaio. Fascinavam-na também as obras de grande efeito e não se cansava de incluí-las, com frequência, nos seus recitais. A Gran Jota Argonesa era o seu beguin. Assim eram os dois virtuosos que tanto influenciaram o ensino do violão no Brasil. Meu poeta se enganou quando disse que as obras de Barrios não estavam editadas. A Ricordi, a casa Romero y Fernandese Hugo Carbono são alguns dos editores das peças de Barrios. Voltando ao movimento de violão, seria injustiça ignorar o trabalho do professor Oswaldo Soares, realizado com perseverança e carinho. Foi ele o primeiro a editar um trabalho pedagógico sobre o instrumento. Foi em 1932. O método é “Escola de Tárrega”, até hoje adotado para os iniciantes do instrumento. Contém diversos estudos e exercícios, e serviu para abrir novos caminhos nos métodos de ensino de violão no Brasil. Isaías Savio é outro batalhador. Uruguaio, chegou ao Brasil em 1931, via Porto Alegre. Desde então vem realizando um trabalho sistemático de divulgação do repertório original do instrumento. É concertista consagrado e compositor dos melhores que possui o violão. Vive hoje em São Paulo, onde criou raízes, tendo fundado a cadeira de Violão no Conservatório de Música de lá, sendo seu professor atual.

É um líder legítimo do atual movimento. Aqui no Rio trabalha-se bastante. Existe a Associação Brasileira de Violão, presidida por Samuel Babo, e congregando gente moça de valor. Antônio Rebelo é outro expoente do movimento. Quincas Laranjeiras foi seu primeiro mestre. Depois Savio. É, atualmente, dos mais categorizados professores que possuem o instrumento no Rio de Janeiro. É compositor emérito e executante primoroso. Sua orquestra de violões, composta exclusivamente de alunos, tem se apresentado com bastante sucesso em diversos recitais, com êxito retumbante. Dilermando Reis, no rádio, faz um trabalho que não pode ser ignorado. Laurindo de Almeida, nos Estados Unidos atualmente, é um embaixador de nossa música. Tem gravado com regularidade alguns microssulcos de incontestável valor. Outros nomes: Luiz Bonfá, Solon Ayala, Luiz Allan, Deoclécio Melin, Lydia Bastiani, Otton Salleiro, Milton Rodrigues, Benedito Chaves, José de Freitas, Osmar de Abreu, Jodacil Damasceno, Mozart de Araújo e Collet. Eddy Cajueiro é glória da Bahia. Mais não cito porque a relação é imensa e a minha memória é fraca.

Falando sobre repertório, meu poeta diz que é um ponto “que descoroçoa frequentemente os amadores”. Eu diria que nem tanto. Creio que depois de estabelecida a técnica é só escolher. Indistintamente poderá optar por obras originais ou transcritas. Não seria exagero dizer que “tudo” está transcrito para violão: Bach, Beethoven, Mozart, Chapi, Rossini, Debussy, Brahms, Chopin, Mendelssohn, Couperin, César Franck, Bellini, Händel, Frescobaldi, Mudarra, Tchaikovsky, Mallats, Haydn, Rameau, Scarlatti, Schummann – vai longe, vai longe e a minha memória mais uma vez se revela fraca. No repertório original então o caso é muito sério. As obras de Diabelli para violão e piano estão editadas pela Schott, e o trio para flauta, violão e violino pela Editora Österreichischer Bundesverlag Wien. E pode-se esquecer Kuffner, contemporâneo de Beethoven? E Leonard de Call, Robert de Visée, Antonio Rovira, Fleury, Rocamora, Giuliani, Arcas, Pujol – e a relação já quer crescer.

Meu poeta há de me desculpar se esta carta está rendendo tanto. Nunca pensei que o assunto fosse tão vasto assim. Não queria acabar o assunto repertório sem falar de Sor. Porque falar em literatura de violão e não falar em Sor é quase a mesma coisa que se falar em poesia e omitir Manuel Bandeira. Sua importância é tremenda, pois a profunda e estranha gravidade, beleza e erudição de suas obras, tornam-no dos mais perfeitos compositores para o instrumento. Sua coleção de estudos e exercícios é esplêndida e não pode ser desprezada por todo aquele que ama o instrumento. Assim que o iniciante começa o aprendizado de violão, ele vai conhecendo Carcassi, Aguado, Carulli, Tárrega, Llobet – e Sor é o verniz, o toque final. Foi também executante primoroso e um dia encontrou Aguado. Sor compôs a obra “Dois amigos” para que ele e Aguado a tocassem. Sabe-se de uma passagem interessante. Um dia, Sor, admirado com a execução, com a prodigiosa execução do amigo (Aguado era diabólico no instrumento, dizia-se que tinha muito de Paganini), disse-lhe: “Jamás podré ejecutar como usted lo hace…”. Ao que Aguado responde: “Ni yo componer ni expressar como usted se siente”.[2]  Meu querido poeta falou sobre Aguado, e nada mais posso dizer. Foi admirável, eis tudo.

É forçoso, agora, penetrar no vastíssimo mundo dos compositores modernos para violão. Aí entra toda a magnífica importância do mais notável executante do instrumento, não citado no artigo do meu poeta, esse extraordinário espanhol Andrés Segovia. (Palavras de Kreisler: “Só existem dois grandes músicos no mundo: Casals e Segovia”.) Segovia é uma espécie de Picasso do violão. O pintor conseguiu, em meio século, segundo a linguagem dos pintores, mudar a face da pintura do mundo. Segovia se tornou o mais perfeito violonista deste século, superando com sua técnica assombrosa as dificuldades do instrumento, depurando-se e não fazendo concessões ao grande público. Atraiu com sua arte os maiores compositores modernos e abriu caminhos inéditos e definitivos para o instrumento. Diria que existe um lirismo chapliniano em sua arte, conjugado a uma força de expressão idêntica à de Picasso. Se já volumosa, a literatura do violão enriqueceu-se mais ainda. Foi Federico Moreno Torroba o primeiro compositor não violonista a compor para o instrumento. Depois Tansman, Turina, Cyrill Scott, Castelnuovo Tedesco, Pedrell e Ponce. A discografia de Segovia é uma esplêndida amostra de seu trabalho. Suas transcrições caracterizam-se pela fidelidade e pela justeza com que cabem no instrumento. Entre outras obras, anotamos as de: Torroba, Turina, Castelnuovo Tedesco, Villa-Lobos, Ponce, Sor, Albeniz, Granados, Robert de Visée, Milán, Händel, Giuliani, Falla, Alonso de Mudarra, Sylvius Leopold Weiss, Bach, Mendelssohn, Schubert, Chopin, Vicenzo Galilei (pai do astrônomo), Tárrega, Llobet e outros mais. A maioria dessas obras, por sinal, estão editadas.

Manu falou, a certa altura, de um “instrumento mais nobre”. Por que mais nobre, meu querido poeta? Onde está a nobilidade das coisas? Heifetz e Kreisler nobilizaram o instrumento que os ciganos (…) vulgarizaram em suas andanças (ou buscas?) pelo mundo. Olhe o piano: as mãos de ouro de Rubinstein ou os dedos negros de Fats Waller, não importa. Cada instrumento serve, de ambas as maneiras, às sensibilidades de cada público (Eu amo Waller e também Rubinstein.) O exemplo da gaita de boca: hoje Edu interpreta Paganini, e Larry Adler transporta Purcell, Vivaldi, Bach e Mozart para o pequenino instrumento. E o consegue com grande beleza. Não é relativa essa nobilidade?

E pode-se esquecer que García Lorca foi um guitarrista de qualidades?

Meu poeta quase aconselha às amadoras que revivam as bergerettes dos séculos 17 e 18. Mas eu acho que temos por aqui tanta coisa bonita que não há necessidade de apelarmos para a produção estrangeira. As modinhas, as canções, cateretês, emboladas, sambas (Sinhô, Ismael Silva, Noel, ah!) estão mesmo aí. E aquelas vozes “redondas e cheias” são mais sugestivas se acompanhando Sílvio, Caymmi, a soberba Araci, Elizeth, Marília e a grande Inesita Barroso. E cresce mais em beleza se nas mãos de Olga Praguer Coelho, emérita cantora-violonista, que mereceu de Segovia e Falla arranjos esplêndidos para o seu violão.

E o amador que se dedique ao instrumento terá que “despender tenacidade e dinheiro” (palavras de Bandeira), mas afirmo que poderá obter um  repertório eclético e equilibrado, desde que saiba procurar. Repertório de violão é feito livro, disco e cachaça; há de todas as qualidades. O mercado está superabastecido de obras para o instrumento. Se o amador quiser ficar por aqui sem atingir as culminâncias de um Sor, Bach, Tedesco, tem muita coisa bonita para satisfazê-lo. Canhoto, Dilermano Reis, Garoto, João Pernambuco, Antônio Rebelo (que bonita a “Serenata”!), Isaías Savio, Lorenzo Fernandes, Radamés Gnattali, Waldemar Henrique – e a lista vai em frente. E Villa-Lobos não trancou a sete chaves sua produção para o instrumento, como disse meu poeta. A obra de Villa está gravada, quase toda ela, por Andrés Segovia, que é dos mais entusiastas divulgadores do nosso maior compositor. Em Houston, Segovia apresentou-se há poucos meses executando a “Fantasia Concertante” para violão e orquestra, a mais recente composição de Villa-Lobos para o instrumento. A Editora Max Eschig editou a Fantasia, os cinco Prelúdios e a série de doze estudos, dedicados a Segovia. O Chorus nº 1 está editado pela A. Napoleão.

Não quero mais cansar meu poeta. Termina, comovido, este moço que lhe quer tremenda e indiscutivelmente bem.

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Carta publicada em Mudando de conversa (1986, p. 156), de Hermínio Bello de Carvalho.