S.l., s.d.

Não sei, mas há um sentimento novo em mim a teu respeito. De onde vem e o que é, não sei bem. Sei ape­nas que é triste e traz como que um vago tom de desa­lento e resignação. Sinto que há alguma coisa se mo­vendo em nós de inexorável. Alguma coisa nos sepa­rando. Eu estaria bem chorando. Meus nervos estão à flor, parece que tocados de uma aguda percepção do que vai acontecer. Seria preciso que tu viesses debaixo de uma grande chuva, cheia de uma piedade infinita e que me desses imediatamente todo o teu carinho — todo o carinho da tua alma. Seria preciso que me des­ses, para o meu abandono, todo o teu abandono. Que só eu estivesse em ti, que me abrigasses no teu coração com uma violência realmente maternal. Seria preciso tudo isso para que o nosso amor estivesse salvo. É pre­ciso que saibas o que tenho sofrido estes dias e por onde tenho andado. É preciso que eu me confesse a ti. Mas não o posso. Não tenho, em ti, a grande confiança que é o sinal da unidade das almas.

No fundo de mim, há uma grande reserva a teu respeito. Uma movimentada atitude de espreita. Será melhor morrer do que continuar assim. Procedeste com uma futilidade que eu nunca te perdoarei… Nada neste mundo te deveria fazer deixar de estar comigo do­mingo, nesse domingo em que eu ia ter contigo, em que eu ia pensar contigo. Perdoei sempre as tuas indecisões a meu respeito, mas não posso esquecer que preferiste a mim essa vida estúpida e nua de praia de banho.

É melhor não me veres mais do que me fazeres so­frer assim. Não perdoo a tua dispersão. Não perdoo a tua leveza diante de minha alma, alma trágica, alma de uma gravidade que não supões, de uma experiência na dor e no pensamento que a tua infância não sabe ava­liar. Eu me enganei contigo. O meu amor não devia ser teu. Tu o desconheces inteiramente. Tu não lhe pres­tas a atenção que ele merece.

Estou sozinho. Mil vezes não te tivesse conhecido. Mil vezes não tivesse encontrado essa aparência que és tu, incapaz de uma longa degradação como eu sou. O que me causa horror é o teu desapreço por mim, homem de pensamento, a tua desatenção pelo espírito que eu sou. Que tenhas feito do homem uma longa brincadeira, está bem, é de mulher nascida de mulher, embora não seja nobre nem justo — mas que tenhas te esquecido de mim…

Schmidt

Augusto Frederico Schmidt. Cartas de sempre. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1981, pp. 59-60.