[Montevidéu], 28 de março de 1966

Mestre Anísio,

Recebi sua carta, mais amarga do que devera com a vida que tem aí ao lado de Emilinha e de Baby, fruindo as doces funções de avô e, sobretudo, repensando a universidade dos povos pobres. Seu amargor não é erradicável, meu caro. Ele lhe vem de se ter feito a conscientização mais aguda do nosso processo de ruptura com o passado. É como a consciência de um guri que pense o trauma do seu próprio parto. Nós outros, os inscientes, mergulhamos no jogo bruto, nos entorpecemos no élan da própria luta, respondendo à ofensa e à estupidez com outras ofensas e brutalidades, movidos pela certeza de que o amanhã será melhor do que o hoje e o ontem e, inexoravelmente, mais parecido com nossa postura do que com qualquer outra do nosso tempo.

Mas lhe confesso que também tenho amargado muito a deterioração do sistema e dos valores em que sempre acreditei, que dão sentido à minha vida e que vemos degradarem-se irremediavelmente no agravamento do conflito sino-soviético, na boçalidade de Fidel, na bestice das esquerdas chilenas, empurrando a juventude democrata-cristã para a direita.

Estamos ficando sós, meu querido, os que nos dizemos herdeiros do patrimônio humanístico. A condenação dos dois escritores soviéticos[1] é um sintoma assustador: por um lado, revela o vigor da nova ordem moral, capaz de cobrar do intelectual uma responsabilidade ética; por outro, desmascara a burocracia que se fez guardiã do patrimônio ético e que pretende filtrar, por seus juízos, o bem e o mal.

A Rússia conseguiu, como sua façanha maior, infundir em multidões um corpo de ideais generosos em nome dos quais as mobiliza para o combate ao atraso e à pobreza. Isso é muito melhor do que o empanturramento material e próspero, sem mensagem de que se alimenta a juventude alemã ocidental ou a yankee. Mas é também uma nova Idade Média, homogênea em suas crenças e disciplinada por guardiães da tradição.

Respondo a isto e à perplexidade em que poderia cair, com a crença de que nos cabe a nós, a intelectualidade dos povos morenos e pobres, a função de nos fazermos o novo sal da Terra. Tendo tarefas específicas de luta contra o atraso e a miséria que nos aquecerão o peito por décadas, nós, os deserdados e discriminados que não possuímos bombas, temos uma autoridade moral de importância decisiva neste mundo em crise de valores. E precisamos usá-la. Podemos entrar no diálogo do homem com uma postura mais sólida, com autoridade para exigir o internamento dos loucos-donos-da-bomba; de exigir dos chinos e dos soviéticos fidelidade às lealdades humanísticas de que se dizem herdeiros.

Por que o senhor não escreve uma carta de pito geral, ecumênico? Fale em nome de W. James, de Dewey[2] aos yankees, e de Lênin e Plekanoff[3] aos russos, de uma dezena de humanistas, deles próprios aos franceses e ingleses. E fale como caboclo do sertão sanfranciscano, último rebento de romanidade.

Estou acabando minha sinfonia xingatória sobre a destinação dos povos americanos. Resultou em dois livros: O desafio americano e Ordem versus progresso. Ainda me ocuparão uns meses de trabalho, mas já estão montados naquela base da só coragem de tentar acertar, aceitando todos os riscos de incorrer em erros e injustiças. Eu os escrevo como um ato de combate para serem ingredientes da luta. Vou tentar mandar uns capítulos para sua crítica.

Estou também trabalhando numa tarefa semelhante à sua, junto à Universidade.[4] Com poucos recursos materiais e humanos, mas com muito entusiasmo. Precisamos dar ao professorado jovem e combativo – sobretudo o pessoal de ciências – e ao movimento estudantil os instrumentos de que jamais dispuseram para usar seus poderes de co-governo da universidade, a fim de aprimorar ela própria e fazê-la melhor servir ao desenvolvimento. Mando junto um primeiro esboço de como vejo o problema. Neste momento, estou preparando os instrumentos para a pesquisa preliminar, que nos dará elementos para o diagnóstico. Depois virão as tarefas críticas e, afinal, a criação do novo modelo de ordenação com o plano orientador para a transição.

Quando nos veremos? Me faz uma falta enorme não tê-lo próximo para aquelas nossas conversas. Abraços saudosos, do seu

Darcy

Arquivo Anísio Teixeira – Fundação Getúlio Vargas/ CPDOC.

[1] N.S.: Em setembro de 1965, dois jovens escritores soviéticos foram presos: Andrei Siniavski  e Iuli Daniel. Sob os pseudônimos de Abram Tertz e Nicolai Arjak, tinham conseguido enviar várias obras de ficção para o Ocidente, além de publicar o ensaio Sobre o realismo socialista. Condenados a cumprir pena em campo de trabalho forçado, provocaram reação na esquerda ocidental.

[2] W. James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952), fundadores da escola filosófica de Pragmatismo e representantes do movimento de educação progressiva norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial.

[3] Lênin (1870-1924) e Gueorgui Plekhanov (1856-1918), políticos, teóricos e revolucionários comunistas russos.

[4] Com o golpe militar em 1964, Darcy foi destituído de seus direitos políticos e demitido do cargo de professor da Universidade do Brasil pelo Ato Institucional nº 1 (AI-1). Nos primeiros dias de abril, deixou o país e exilou–se no Uruguai. Nesse país, lecionou antropologia na Universidade da República Oriental do Uruguai, em Montevidéu, até 1968.